30 de setembro de 2012 | N° 17208
VERISSIMO
A
nobre irmandade
O fogo era a televisão da pré-história, com uma programação
muito melhor
Tese: o clima frio favoreceu o crescimento de civilizações
mais avançadas porque os habitantes de climas frios passavam mais tempo
contemplando o fogo. Os povos de climas quentes tinham menos necessidade de
fogo para aquecê-los, por isso foram privados das divagações que vêm com a
contemplação do fogo e são menos filosóficos e mais superficiais. Nos climas
frios, de tanto olhar as chamas qualquer pessoa acabaria desenvolvendo, se não escatologias
ou sistemas ontológicos completos, pelo menos teorias.
Os povos de clima quente têm a experiência direta do sol na
cabeça, os de clima frio experimentavam o sol armazenado na madeira, portanto o
sol intermediado, reciclado pelo tempo. O fogo armazenado é o sol de segunda
mão, quase uma versão literária. Olhar para o sol transformado em fogo
domesticado leva a abstrações e ponderações, olhar para o sol original leva à
cegueira.
Mas tanto o sol vivo no céu quanto o sol ressuscitado no
fogo podem destruir o cérebro, um fritando-o e outro levando-o para tão longe
que ele quase se eteriza. Não há Einsteins em regiões tropicais, mas também não
há muitos cientistas loucos. Abstrações e ponderações em overdose também podem
ser fatais. Contemplar muito o fogo também enlouquece.
A combustão da madeira, sendo consumida pelo fogo do sol que
absorveu a vida toda, é uma metáfora para a existência: você também é consumido
pelo que lhe dá energia – mais ou menos rapidamente, dependendo de ser graveto
ou nó de pinho. Se envelhecer é ir ficando cada vez mais grave, só atingiremos
nossa verdadeira seriedade depois de mortos, quando nos juntaremos aos fósseis.
Também levaremos energia aprisionada para baixo da terra e seremos como o
carvão, o petróleo e os restos degradados de tudo que já viveu, integrados na
capa explosiva do planeta – o que pode ser mais sério?
Toda matéria orgânica, da jabuticaba ao Papa, almeja isso,
essa respeitabilidade subterrânea, essa dignidade de mineral depois da
frivolidade efêmera da vida. Do barro viemos e ao barro voltaremos, mas agora
em outra categoria, depois da nossa temporada ao sol: a de combustível. Entendo
quem prefira a cremação (que é quando a nossa identificação com lenha fica mais
completa), mas eu quero tudo a que tenho direito depois de morto. Decomposição,
gazes – enfim, minha iniciação na nobre irmandade dos inflamáveis.
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