29
de setembro de 2012 | N° 17207PESQUEIRO |
LUÍS
AUGUSTO FISCHER
Nós, os gaúchos
No
encerramento de mais um mês de comemorações festivas do tradicionalismo
gauchesco, me ocorre evocar aqui um aniversário de 20 anos: em 1992, segundo
semestre, foi lançado, pela Editora da UFRGS, um volume de ensaios chamado Nós,
os Gaúchos. Acabou sendo o primeiro de uma série de cinco volumes (Nós, os Gaúchos
II, Nós, os Teutogaúchos, Nós, os Afrogaúchos e Nós, os Italogaúchos). Cheguei
a conceber um sexto volume, que se chamaria Nós, os Neogaúchos, junto com o
paulista, aqui residente, José do Nascimento Júnior, mas o plano foi abortado
pela mesma editora (e, olha, o volume ia ficar bacana).
O
livro foi muito vendido naquele ano e nos seguintes, tendo alcançado quatro edições;
foi adotado em cursos da área de Humanidades e circulou bastante por agências
de publicidade e em empresas que buscavam informações sobre o temperamento
local. E não era para menos, digo com vaidade e certa cabotinice, porque fui um
dos organizadores do livro, junto com Sergius Gonzaga, meu colega, que era na
altura diretor da Editora da UFRGS e agora é secretário de Cultura de Porto
Alegre.
O
nascimento foi trivial. Certo dia, estava eu de papo com Poti Campos, na então
livraria de seu pai, Arnaldo Campos, no Campus Central da UFRGS. (Bom tempo
aquele em que a universidade federal tinha uma livraria no Campus Central.) E
foi o Poti quem observou que naquele ano estavam saindo alguns artigos bem
interessantes sobre coisas características da cultura do Estado.
Era
uma nova rodada, uma nova geração de pensamento sobre esse nó identitário e
histórico, tão interessante quanto, por vezes, aborrecido, que se expressa na
forma de orgulho e bravata assim como na forma de crítica e mesmo de condenação
ideológica. E perguntou o Poti: por que eu não organizava um livro sobre o
tema? Apresentei ao Sergius a ideia, que foi imediatamente aceita. Mãos à obra,
então.
Nota
de época: em 1992 a internet não existia (só em rede universitária, usada por
meia dúzia). Apenas em 1995 foi criada a internet comercial (um exemplo
concreto: o UOL começou a funcionar em 1996, dia 28 de abril). Outra nota: ninguém
tinha ainda telefone celular, aqui no estado (no Rio começou a circular em 1990).
Então, entramos em contato com amigos e conhecidos, assim como com gente mais
distante, sempre por telefone, para encomendar um texto que pensasse, de modo não
óbvio, sobre o jeito de ser dos gaúchos.
Acontecimentos
maiúsculos
O
mundo era bem diferente vinte anos atrás. Vejamos alguns marcos. Naquele ano
ocorreu a assinatura do Tratado da União Europeia, marco do inédito grau de
integração entre as nações do Velho Continente (isso no bafo quente do fim da
União Soviética, no ano anterior, o que já tinha sido motivo suficiente para
perceber que o mundo havia mudado muito). Por outro lado, e não sem certo
atraso, a Igreja Católica perdoou Galileu Galilei (1564 – 1642). De qual
pecado, mesmo?
No
Brasil, muita coisa apontava para mudança também. Em relação à Europa unificada
e aos ventos promissores de integração, valerá lembrar que saiu no Brasil a
tradução de um excelente livro de Robert Kurz, O Colapso da Modernização, em
que o otimismo liberal que se congratulava pelo fim do comunismo era examinado à
luz de um marxismo ainda muito eficaz. Era o contraponto ao ensaio de Francis
Fukuyama, O Fim da História e o Último Homem, editado no Brasil no mesmo 1992.
No
plano político imediato, ocorreu o impeachment de Collor, com a subsequente
ascensão de Itamar Franco (e de um seu ministro cheio de apetite, Fernando
Henrique Cardoso, ainda esquentando o motor para os futuros oito anos de gestão).
O país sediou a famosa Eco 92, a também inédita cúpula mundial sobre clima e
ambiente. Não menos impactante foi o horror do Massacre do Carandiru, 111
presos indefesos chacinados com impiedade da PM paulista.
No
Rio Grande do Sul, mais modestamente, devemos anotar a visita do Dalai Lama e
uma rara reeleição em Porto Alegre, o mesmo partido, o PT, engrenando a segunda
de quatro gestões sucessivas na prefeitura. E aqui, talvez mais do que em
outras partes do Brasil, ganhava corpo o sonho de integração regional na forma
do Mercosul, que no ano anterior, 91, tinha ganhado a primeira cara visível,
com o Tratado de Foz do Iguaçu, o primeiro documento a englobar os quatro países-membros
originais.
Para
dizer de modo breve: 1992 foi uma evidência de que ingressávamos em outro
momento histórico, posterior à Guerra Fria, esta o ambiente e horizonte histórico
em que tudo havia se movido desde a Segunda Guerra. O termo “pós-modernismo” ganhava
destaque, e falava-se em “globalização” ainda com ressalvas e enormes interrogações,
porque as barreiras nacionais à circulação de bens, serviços e pessoas eram
ainda firmes e fortes. Quem podia prever que ruiriam com tanta velocidade?
Pensar
o local em época global
Pois
foi justamente neste momento, que se poderá qualificar como globalizante sem
muita dificuldade, que nasceu Nós, os Gaúchos. Reação ao fenômeno europeu?
Caipirice? Da parte dos organizadores, não havia qualquer intenção
restauracionista, nem mesmo saudosista; pelo contrário, o caso era tomar uma
atitude freudiana, de discutir o tema para justamente tentar entendê-lo
criticamente, com distância.
Não é
possível citar todos os colaboradores que aceitaram o convite: foram ao todo 58
pessoas, que resultaram em 55 textos, de grande valor até agora, numa organização
em oito seções – lembro com clareza da tarde em que o Sergius e eu, tomando um
cafezinho na Editora, repassamos os textos e os agrupamos por afinidades temáticas,
bolando para cada conjunto um título: Nós e o Resto do Mundo; Nós Quem?; Então
nos Pilchamos; No Tropel da Memória; Sentinelas de Quê?; Fandango da Cultura; A
Cidade que Não Está no Mapa; e, finalmente, Atrás da Alma Macanuda.
Uma
lista eloquente é a dos colaboradores agora já falecidos. São eles: Sandra
Pesavento, Décio Freitas, Rovílio Costa, Oliveira Silveira, Barbosa Lessa,
Carlos Reverbel, Nelson Werneck Sodré, Arnaldo Campos, Luiz Pilla Vares, Mozart
Pereira Soares, Paulo Hecker Filho, Cyro Martins, Moacyr Scliar. Sem
dificuldade o leitor pode imaginar o valor da contribuição de cada um deles,
todos inteligentes e com coisa a dizer, inclusive o carioca Werneck Sodré, que
recordou em seu texto dos cinco anos que passou em Cruz Alta, a partir de 1950.
Dá vontade
de comparar aquele ano com o presente, perguntando se as reflexões de então
caberiam a 2012. Sim? Melhoramos ou pioramos? Em grande parte, o tempo não
parece ter passado.
Por
exemplo: no livro se manifestaram vozes identificadas com o Tradicionalismo,
como Barbosa Lessa e Nico Fagundes, assim como gente notoriamente crítica a
ele, como José Hildebrando Dacanal e Tau Golin. Debate vivo ainda. Mas também
no livro foi impressa a primeira versão da Estética do Frio, de Vitor Ramil,
texto de impressionante impacto de então em diante, assim como um texto agudo
de Luciano Alabarse sobre certo traço autodestrutivo da vida mental gaúcha.
O
livro mantém atualidade, em geral. A globalização prometida em 92 já deu
algumas voltas no planeta, teve alguns solavancos e encontra agora a China e o
Brasil como protagonistas no planeta – nada que pudesse ser pensado com clareza
vinte anos atrás, quando o Brasil importava pouco (nos dois sentidos da frase),
e do Oriente extremo só se ouvia a voz do Japão e dos Tigres Asiáticos.
A
fantasia liberal de que estava tudo resolvido e havíamos chegado ao fim da história
revelou-se uma tolice; em contrapartida a esquerda não conseguiu formular um
novo modelo de sociedade para além do verdismo, da sustentabilidade, do combate
à corrupção, nos melhores casos.
Aqui
no Estado, muito fizemos de bom de lá para cá. Pense o leitor no Porto Alegre
Em Cena, que iniciou em 94; na revelação pública do talento do cientista e
pensador Ivan Izquierdo, ocorrida em 95;
na
Bienal do Mercosul, com primeira edição em 97; no primeiro Fórum Social
Mundial, em 2001,que botou Porto Alegre num mapa planetário inédito; na invenção
do StudioClio em 2005 e do Fronteiras do Pensamento em 2006; na quantidade
apreciável de CDs, exposições e livros (muitos escritores publicam direto fora
daqui, desde então). Não, não foi só a adesão ao Tradicionalismo que cresceu, e
nem só ele representa reação contra a macdonaldização do mundo.
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