quarta-feira, 19 de setembro de 2012


MARCELO COELHO

Não é fácil ser chique

A estética proletária, em sua modalidade "retrô", acompanha o processo de ascensão da classe baixa

COMEÇOU COM a calça jeans, continuou com a camiseta Hering, vai adiante com as Havaianas. O processo é o mesmo: uma coisa de pobre se torna item de consumo chique.

Quando chega a esse ponto, é natural que variem as versões de cada produto. Há o jeans de grife, caríssimo, ao qual se aplicam, por vezes, bordados ou cristais. Pode-se optar pelo contrário, que é mais chique ainda: primeiro desbotando a calça, depois esfiapando-a aos frangalhos.

Chique mesmo, sem dúvida, é usar a calça mais barata possível, sem grife; ou as Havaianas tradicionais. Mas isso é para quem pode. Os outros (as outras) vão continuar gastando em jeans caríssimos, com sapatos de salto agulha e bico pontudinho. Se o sapato for branco, estaremos diante de um caso perdido.

Vejo que também na gastronomia vai acontecendo coisa parecida. Até a perua do salto agulha já deixou de pedir camarão à grega nos restaurantes. "Prato de p...", dizia há décadas um amigo que entendia do assunto. Ele também discriminava o estrogonofe.

Sabe o que ficou chique agora? O miojo. Pelo menos, é a aposta da editora Boccato, em parceria com a agência publicitária Nazca e, naturalmente, a Nissin, fabricante do macarrão instantâneo.

O livro, intitulado "Meu Miojo", traz contribuições de famosos chefes de cozinha, como Carla Pernambuco, Erick Jacquin e Emmanuel Bassoleil. Eles escrevem pequenos textos memorialísticos, e sugerem receitas capazes de dar um "upgrade" no estimado produto.

O resultado, que não fiz questão de experimentar na prática, parece afinal um pouco simplório. Várias receitas apostaram no óbvio para sofisticar o miojo. A saber, muito camarão por cima. Ou até lagosta. E ainda "foie gras".

Não, o espírito não pode ser esse. Seria necessário fazer como em alguns restaurantes caríssimos em São Paulo, que reservam para o cardápio de sobremesas suas iniciativas mais insultuosas.

Funciona assim. Você pode escolher, digamos, entre uma espuma de tangerina com raspas de canela tailandesa, um sorvete de chá verde com calda de jabuticaba ou uma torradinha de marzipã com caroço de maracujá. Sua dúvida é cruel, mas aí surge a última sugestão do chefe. Goiabada com queijo de Minas. Preço: que tal uns 30 ou 40 reais?

Certo prelado, em almoço a que compareci, mantinha à mesa os elevados princípios éticos que orientavam sua prática cotidiana. Ofereceram-lhe uma salada, não das mais imaginativas.

Até mesmo uma rodela de tomate, um talo de salsão, seriam coisa abusiva para o religioso. Como quem pede desculpas, ele retirou duas folhas de alface. "Não quer azeite?", perguntou alguém. Ele abaixou a cabeça. "Não, não, só a alface... com toda a simplicidade..."

A goiabada com queijo, em sua pura "simplicidade", fazia naturalmente o efeito contrário no restaurante da moda.

O miojo, para ficar chique mesmo, precisaria de algo além de camarões e lagostas. Precisa de consumidores chiques. Não que não existam; mas é o contexto social, não o acompanhamento culinário, o que decide nesse caso.

Seja como for, é radioso o futuro de produtos desse tipo -como aconteceu com as almofadas de fuxico, os vestidos de chita, o revestimento de pastilhas, os móveis de fórmica.

A estética proletária, em sua modalidade "retrô", acompanha o processo de ascensão da classe baixa no Brasil. Nada ficou mais brega do que um cruzeiro nas Bahamas. Pela ordem natural das coisas, é de prever que se torne elegante passar um fim de semana com churrasco, pescando na represa.

O sociólogo David Riesman, num livro da década de 1950, falava da transição dos hábitos da classe alta. O esbanjamento puro e simples, o "consumo conspícuo", dava lugar à "diferenciação marginal". Mármore, ouro e veludo cedem a materiais simples, com o toque imperceptível do designer ou do estilista.

Veio, depois, a fase do "design conspícuo" -a camiseta com a grife escrita em letras garrafais. Agora, a periferia assume a peruagem. É o que mostra a revista "Época", tratando do "funk da ostentação" em São Paulo.

O cantor MC Danado, por exemplo, enaltece em suas letras a posse de um Rolex e de "10 mil para gastar". Maria Antonieta, se estivesse viva, bem que poderia fazer a inocente pergunta: "Por que eles não comem miojo?". Mas, como se sabe, não há revolução à vista. O miojo e as Havaianas não serão confiscados nos Jardins.

coelhofsp@uol.com.br

Nenhum comentário: