quinta-feira, 27 de setembro de 2012


Pasquale Cipro Neto

'O bom filho a casa torna'

A palavra grega "crase" significa "ação de misturar". Ocorre "crase" quando duas vogais iguais se fundem
NO INÍCIO da última coluna, citei duas frases em que a ausência do acento indicador de crase causa algum estranhamento. Uma delas está no título desta coluna. Não foram poucos os leitores que me pediram que não deixasse de tratar do assunto nesta semana. Para apimentar a questão, apresento outra construção. Lá vai: "O bom filho torna à casa dos pais" (agora com acento grave no "a").

Parece conveniente começar pela palavra "crase" em si, que nomeia o fenômeno da fusão de duas vogais iguais. De acordo com o "Houaiss", a palavra grega "crase" significa "ação de misturar". No caso da língua, ocorre "crase" quando duas vogais iguais se fundem. Isso pode ocorrer, por exemplo, na evolução de uma palavra latina para o português.

Na atual palavra portuguesa "cor", houve crase, já que esse vocábulo resultou da evolução de "colore" (do latim) para "coor", que depois passou a "cor". No percurso de "coor" para "cor" houve crase, já que o grupo "oo" passou a "o".

No português moderno, a crase se resume à fusão da preposição "a" com um segundo "a", que quase sempre é artigo, mas pode ser pronome demonstrativo ou ainda a letra "a" inicial do artigo "as" ou dos demonstrativos "aquele/s", "aquela/s" e "aquilo". Em "Por favor, diga àquele rapaz que...", ocorre a fusão da preposição "a", regida por "dizer" ("dizer a alguém"), com o "a" inicial de "aquele".

Indica-se a ocorrência da crase com o acento grave (acento indicador de crase). Por um processo muito comum na língua (a metonímia), "crase" acabou tornando-se também o nome do acento com o qual se indica a ocorrência do próprio fenômeno da crase.

Por que não há acento grave no "a" de "O bom filho a casa torna"? Nessa frase "tornar" é sinônimo de "voltar", "regressar", certo? Nesse caso, os três verbos podem reger a preposição "a" (voltar/regressar/tornar a algum lugar). Muito bem. Já achamos um "a". Para que se coloque o acento grave, será necessário encontrar o segundo "a", que se fundirá com o primeiro, certo? Esse segundo "a" existe?

Pense nestes exemplos: "Não dormiu em casa"; "É bom voltar para casa"; "Não venho de casa". O que há em comum nos três casos? O valor da palavra "casa", que remete à ideia da própria habitação. Há outra coisa em comum: o fato de não haver artigo antes da palavra "casa" ("em casa", "para casa", "de casa", respectivamente).

Já chegou lá, caro leitor? A que casa o bom filho torna, volta, regressa? À própria, não? Se em vez de "a" usássemos "para", o que teríamos: "para casa" ou "para a casa"? Teríamos "para": "O bom filho torna/volta/regressa para casa". Sim, sim, já sei. Você deve estar pensando na palavra masculina "lar", que, no caso, exigiria "ao" ("O bom filho torna/volta/regressa ao lar"). Mas quem foi que disse que o fato de duas palavras serem sinônimas garante comportamento morfossintático igual?

Vamos voltar a dois dos exemplos vistos. Compare o que ocorre antes de "casa" com o que ocorre antes de "lar": "Não dormi em casa/no lar"; "É bom voltar para casa/para o lar". Percebeu? Que fique claro: quando a palavra "casa" indica a própria habitação, é inútil usar o velho macete da substituição do feminino por um masculino. E por quê? Porque, como vimos e revimos, "casa" é um caso à parte.

É bom deixar bem claro que esse "caso à parte" se limita aos casos em que a palavra "casa" não é modificada por nenhum adjetivo, pronome etc. Veja: "Ela não dormiu em casa"/"Ela não dormiu na casa da irmã". Já chegou lá? Já entendeu por que não há acento grave em "O bom filho a casa torna", mas há em "O bom filho torna à casa dos pais"? É isso.

inculta@uol.com.br

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