Pasquale Cipro Neto
'O bom filho a casa torna'
A palavra grega "crase"
significa "ação de misturar". Ocorre "crase" quando duas
vogais iguais se fundem
NO INÍCIO da última coluna, citei
duas frases em que a ausência do acento indicador de crase causa algum
estranhamento. Uma delas está no título desta coluna. Não foram poucos os
leitores que me pediram que não deixasse de tratar do assunto nesta semana.
Para apimentar a questão, apresento outra construção. Lá vai: "O bom filho
torna à casa dos pais" (agora com acento grave no "a").
Parece conveniente começar pela
palavra "crase" em si, que nomeia o fenômeno da fusão de duas vogais
iguais. De acordo com o "Houaiss", a palavra grega "crase"
significa "ação de misturar". No caso da língua, ocorre "crase"
quando duas vogais iguais se fundem. Isso pode ocorrer, por exemplo, na
evolução de uma palavra latina para o português.
Na atual palavra portuguesa
"cor", houve crase, já que esse vocábulo resultou da evolução de
"colore" (do latim) para "coor", que depois passou a
"cor". No percurso de "coor" para "cor" houve
crase, já que o grupo "oo" passou a "o".
No português moderno, a crase se
resume à fusão da preposição "a" com um segundo "a", que
quase sempre é artigo, mas pode ser pronome demonstrativo ou ainda a letra
"a" inicial do artigo "as" ou dos demonstrativos
"aquele/s", "aquela/s" e "aquilo". Em "Por
favor, diga àquele rapaz que...", ocorre a fusão da preposição
"a", regida por "dizer" ("dizer a alguém"), com o
"a" inicial de "aquele".
Indica-se a ocorrência da crase
com o acento grave (acento indicador de crase). Por um processo muito comum na
língua (a metonímia), "crase" acabou tornando-se também o nome do
acento com o qual se indica a ocorrência do próprio fenômeno da crase.
Por que não há acento grave no
"a" de "O bom filho a casa torna"? Nessa frase
"tornar" é sinônimo de "voltar", "regressar",
certo? Nesse caso, os três verbos podem reger a preposição "a"
(voltar/regressar/tornar a algum lugar). Muito bem. Já achamos um
"a". Para que se coloque o acento grave, será necessário encontrar o
segundo "a", que se fundirá com o primeiro, certo? Esse segundo
"a" existe?
Pense nestes exemplos: "Não
dormiu em casa"; "É bom voltar para casa"; "Não venho de
casa". O que há em comum nos três casos? O valor da palavra
"casa", que remete à ideia da própria habitação. Há outra coisa em
comum: o fato de não haver artigo antes da palavra "casa" ("em
casa", "para casa", "de casa", respectivamente).
Já chegou lá, caro leitor? A que
casa o bom filho torna, volta, regressa? À própria, não? Se em vez de
"a" usássemos "para", o que teríamos: "para casa"
ou "para a casa"? Teríamos "para": "O bom filho
torna/volta/regressa para casa". Sim, sim, já sei. Você deve estar
pensando na palavra masculina "lar", que, no caso, exigiria
"ao" ("O bom filho torna/volta/regressa ao lar"). Mas quem
foi que disse que o fato de duas palavras serem sinônimas garante comportamento
morfossintático igual?
Vamos voltar a dois dos exemplos
vistos. Compare o que ocorre antes de "casa" com o que ocorre antes
de "lar": "Não dormi em casa/no lar"; "É bom voltar
para casa/para o lar". Percebeu? Que fique claro: quando a palavra
"casa" indica a própria habitação, é inútil usar o velho macete da
substituição do feminino por um masculino. E por quê? Porque, como vimos e
revimos, "casa" é um caso à parte.
É bom deixar bem claro que esse
"caso à parte" se limita aos casos em que a palavra "casa"
não é modificada por nenhum adjetivo, pronome etc. Veja: "Ela não dormiu
em casa"/"Ela não dormiu na casa da irmã". Já chegou lá? Já
entendeu por que não há acento grave em "O bom filho a casa torna",
mas há em "O bom filho torna à casa dos pais"? É isso.
inculta@uol.com.br
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