VLADIMIR SAFATLE
'Cosmópolis'
"O
dinheiro perdeu sua qualidade narrativa, tal como aconteceu com a pintura antes.
O dinheiro agora fala sozinho." Pela primeira vez em todo o filme, Eric
Packer presta atenção em outra pessoa, a que fala estas frases: "A única
coisa que importa é o preço que se paga. Você mesmo, Eric, pense só: o que você
comprou por US$ 104 milhões de dólares? Não foram dezenas de cômodos, vistas
incomparáveis, elevadores privados. Você gastou esse dinheiro pelo próprio número
em si, US$ 104 milhões. Foi isso o que você comprou".
Só um
cineasta como David Cronenberg seria capaz de filmar esse automovimento do
capital transformado em modo de funcionamento do desejo. O cinema a serviço da
crítica social nós conhecemos. Mas conhecemos pouco o cinema como exposição trágica
do ponto de junção entre vida econômica e economia psíquica. Esse cinema nos
foi apresentado por "Cosmópolis", novo filme do cineasta canadense e
um dos retratos mais fiéis do nosso mundo em crise.
Cronenberg
sempre foi sensível ao caráter marcial do desejo que só se manifesta quando se
choca contra seu ponto de excesso. "Crash - Estranhos Prazeres", "Mistérios
e Paixões" e "Videodrome" são alguns dos seus filmes entre os
mais relevantes dos últimos tempos por, entre outras coisas, fornecer as
imagens para descrevermos a maneira com que o desejo, muitas vezes, existe
apenas ao se bater contra os limites do corpo, da identidade, do real, da forma.
Existe somente reduzindo todo objeto a um movimento incessante que ignora
limites.
Porém,
com "Cosmópolis", Cronenberg lembrou como esses sujeitos assombrados
por seu próprio gozo não são o ponto de desajuste da vida social. Eles são o
verdadeiro cerne de funcionamento do capitalismo contemporâneo. Eles são a
encarnação de uma unidade monetária que perdeu sua qualidade narrativa para se
realizar como puro movimento, para não falar de nada a não ser de sua própria
quantidade.
Aparentemente,
vemos em "Cosmópolis" um dia na vida de um jovem yuppie em sua
limusine que procura por um acontecimento que pare o movimento que tudo anula,
seja tal acontecimento o assassinato, o sexo ou a simples e pura perda de tudo.
No
entanto, ao filmar Eric em sua limusine, Cronenberg mostrou, na verdade, qual a
melhor maneira para analisar uma crise. Uma verdadeira crise nunca é apenas
econômica, mas também política e, principalmente, psicológica.
Crise
não apenas dos modelos, mas também de seus contrapontos. Crise que nos ensina o
sentido desta outra frase que Eric Packer ouvirá de uma amante, frase que ele
precisará de todo o filme para compreender: "Você está começando a achar
que duvidar é mais interessante do que agir. Duvidar exige mais coragem".
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