domingo, 23 de setembro de 2012


FERREIRA GULLAR

A arte de nosso tempo

É que assim são as coisas, na vida como na arte: fruto das probabilidades que se tornam ou não necessárias

Uma leitura possível da história das artes visuais -de que resultaram as manifestações contemporâneas- identificará a invenção da fotografia como um fator decisivo desse processo.

A crítica, de modo geral, há muito associa ao surgimento da fotografia a mudança da linguagem pictórica, de que resultou o movimento impressionista.

É uma observação pertinente, desde que se tenha o cuidado de não simplificar as coisas, ou seja, não desconhecer a existência de outros fatores que também influíram nessa mudança. Um desses fatores foi a descoberta da cor como resultante da vibração da luz sobre a superfície das coisas.

Noutras palavras, o surgimento do impressionismo -que constituiu uma ruptura radical com a concepção pictórica da época- estava latente na pintura de alguns artistas de então, como, por exemplo, Eugène Delacroix e Édouard Manet, que já anunciavam a superação de certos valores estéticos em vigor. Não resta dúvida, no entanto, que a invenção da fotografia, por tornar possível a fixação da imagem real com total fidelidade, impunha o abandono do propósito de conceber a pintura como imitação da realidade.

Se tal fato não determinou, por si só, a revolução impressionista, sem dúvida alguma libertou a pintura da tendência a copiar as formas do mundo real e, assim, deixou o pintor livre para inventar o que pintava.

Pretendo dizer com isso que, se a cópia da realidade, pela pintura, se tornara sem propósito, isso não implicaria automaticamente em pintar como o fez Monet, ao realizar a tela "Impression, Soleil Levant", que deu origem ao impressionismo. Poderia ter seguido outro rumo.

Mas, se o que nasceu naquelas circunstâncias foi a pintura impressionista, houve razões para que isso ocorresse. E essas razões, tanto estavam implícitas na potencialidade da linguagem pictórica daquele momento, como no talento de Monet, na sua personalidade criadora. É que assim são as coisas, na vida como na arte: fruto das probabilidades que se tornam ou não necessárias.

A verdade, porém, é que, se não houvesse surgido uma maneira de captar as imagens do real de modo fiel e mecânico, o futuro da pintura (e das artes visuais em geral) teria sido outro. A pintura, então, livre da imitação da natureza, ganha autonomia: o pintor então podia usar de seus recursos expressivos para inventar o quadro conforme o desejasse e pudesse.

Como consequência disso, não muito depois, nasceram as vanguardas artísticas do século 20: o cubismo, o futurismo, o expressionismo, o dadaísmo, o surrealismo -todos eles descomprometidos com a imitação da realidade.

Mas essa desvinculação com o mundo objetivo terá consequências: a liberdade sem limites levará, de uma maneira ou de outra, à desintegração da linguagem artística, particularmente a da pintura.

Os dadaístas chegam a realizar quadros mais determinados pelo acaso do que por alguma qualquer intenção deliberada do autor. E se a arte podia ser fruto de tamanha gratuidade, não teria mais sentido pintar nem esculpir. O urinol de Marcel Duchamp é resultado disso. Por essa razão, ele afirmou: "Será arte tudo o que eu disser que é arte". Ou seja, tudo é arte. Ou seja, nada é arte.

Por outro lado, a fotografia, que nasceu como retrato do real, foi se afastando dessa condição e, como a pintura, passou também a inventá-lo. Por outro lado, ela ganhou movimento e se transformou em cinema, que tem como principal conquista a criação de uma linguagem própria, totalmente distinta da de todas as outras artes.

Cabe aqui uma observação: a pintura não apenas fazia o retrato das pessoas, como também mostrava cenas da vida, como as ceias, os encontros na alcova, as batalhas, os idílios etc. Quanto a isso, mais que a fotografia, o cinema criou, com sua linguagem narrativa, um mundo ficcional, que nenhuma outra arte -e tampouco a pintura- é capaz de nos oferecer.

A meu ver, o cinema, superando o artesanato, é a grande arte tecnológica, que criou uma linguagem própria -condição essencial para que algo seja considerado arte-, geradora de um univewrso imaginário inconfundível, de possibilidades inesgotáveis, sofisticado e ao mesmo tempo popular. O cinema é, sem dúvida, a arte de nosso tempo.

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