FERREIRA
GULLAR
A arte de nosso tempo
É que
assim são as coisas, na vida como na arte: fruto das probabilidades que se
tornam ou não necessárias
Uma
leitura possível da história das artes visuais -de que resultaram as manifestações
contemporâneas- identificará a invenção da fotografia como um fator decisivo
desse processo.
A crítica,
de modo geral, há muito associa ao surgimento da fotografia a mudança da
linguagem pictórica, de que resultou o movimento impressionista.
É uma
observação pertinente, desde que se tenha o cuidado de não simplificar as
coisas, ou seja, não desconhecer a existência de outros fatores que também influíram
nessa mudança. Um desses fatores foi a descoberta da cor como resultante da
vibração da luz sobre a superfície das coisas.
Noutras
palavras, o surgimento do impressionismo -que constituiu uma ruptura radical
com a concepção pictórica da época- estava latente na pintura de alguns
artistas de então, como, por exemplo, Eugène Delacroix e Édouard Manet, que já anunciavam
a superação de certos valores estéticos em vigor. Não resta dúvida, no entanto,
que a invenção da fotografia, por tornar possível a fixação da imagem real com
total fidelidade, impunha o abandono do propósito de conceber a pintura como
imitação da realidade.
Se
tal fato não determinou, por si só, a revolução impressionista, sem dúvida
alguma libertou a pintura da tendência a copiar as formas do mundo real e,
assim, deixou o pintor livre para inventar o que pintava.
Pretendo
dizer com isso que, se a cópia da realidade, pela pintura, se tornara sem propósito,
isso não implicaria automaticamente em pintar como o fez Monet, ao realizar a
tela "Impression, Soleil Levant", que deu origem ao impressionismo. Poderia
ter seguido outro rumo.
Mas,
se o que nasceu naquelas circunstâncias foi a pintura impressionista, houve razões
para que isso ocorresse. E essas razões, tanto estavam implícitas na potencialidade
da linguagem pictórica daquele momento, como no talento de Monet, na sua
personalidade criadora. É que assim são as coisas, na vida como na arte: fruto
das probabilidades que se tornam ou não necessárias.
A
verdade, porém, é que, se não houvesse surgido uma maneira de captar as imagens
do real de modo fiel e mecânico, o futuro da pintura (e das artes visuais em
geral) teria sido outro. A pintura, então, livre da imitação da natureza, ganha
autonomia: o pintor então podia usar de seus recursos expressivos para inventar
o quadro conforme o desejasse e pudesse.
Como
consequência disso, não muito depois, nasceram as vanguardas artísticas do século
20: o cubismo, o futurismo, o expressionismo, o dadaísmo, o surrealismo -todos
eles descomprometidos com a imitação da realidade.
Mas
essa desvinculação com o mundo objetivo terá consequências: a liberdade sem
limites levará, de uma maneira ou de outra, à desintegração da linguagem artística,
particularmente a da pintura.
Os
dadaístas chegam a realizar quadros mais determinados pelo acaso do que por
alguma qualquer intenção deliberada do autor. E se a arte podia ser fruto de
tamanha gratuidade, não teria mais sentido pintar nem esculpir. O urinol de
Marcel Duchamp é resultado disso. Por essa razão, ele afirmou: "Será arte
tudo o que eu disser que é arte". Ou seja, tudo é arte. Ou seja, nada é arte.
Por
outro lado, a fotografia, que nasceu como retrato do real, foi se afastando
dessa condição e, como a pintura, passou também a inventá-lo. Por outro lado,
ela ganhou movimento e se transformou em cinema, que tem como principal
conquista a criação de uma linguagem própria, totalmente distinta da de todas
as outras artes.
Cabe
aqui uma observação: a pintura não apenas fazia o retrato das pessoas, como
também mostrava cenas da vida, como as ceias, os encontros na alcova, as
batalhas, os idílios etc. Quanto a isso, mais que a fotografia, o cinema criou,
com sua linguagem narrativa, um mundo ficcional, que nenhuma outra arte -e
tampouco a pintura- é capaz de nos oferecer.
A
meu ver, o cinema, superando o artesanato, é a grande arte tecnológica, que
criou uma linguagem própria -condição essencial para que algo seja considerado
arte-, geradora de um univewrso imaginário inconfundível, de possibilidades
inesgotáveis, sofisticado e ao mesmo tempo popular. O cinema é, sem dúvida, a
arte de nosso tempo.
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