quinta-feira, 20 de setembro de 2012


CLÓVIS ROSSI

Momento "Justo Veríssimo"

Fala de Romney sobre os 47% não é gafe. É um nhino ao mais absoluto e cruel individualismo

Mitt Romney viveu o seu "momento Justo Veríssimo", no vídeo em que diz se lixar para os 47% dos norte-americanos que, segundo ele, não pagam Imposto de Renda e vivem dependurados nas tetas já não tão gordas do governo.

Justo Veríssimo é um personagem de Chico Anysio, claramente calcado em algum político ou numa mistura de políticos vários, cujo bordão era "quero que o povo se exploda".

Compare agora o que disse Romney e veja se não é uma variante desse bordão: "Minha tarefa é não me preocupar com essa gente".

Justo Veríssimo ficava bem como deboche, componente essencial do humorismo. Na vida real, no entanto, revela toda a alma de um candidato e de seu projeto de país.

Primeiro, Romney disse apenas meia verdade ao calcular em 47% os norte-americanos que não pagam o Imposto de Renda federal. A parte verdadeira: de fato, 46,7% não pagaram no ano passado.

Mas é falso, ao contrário do que disse o candidato republicano, que se trata de gente que gosta de depender do governo.

Desses 46,7%, a maioria paga, sim, outros impostos, inclusive os da seguridade social. Sobram só 18,1% que não pagam nem Imposto de Renda nem taxas sobre os salários, mas pagam o IVA e diferentes taxas estaduais.

Além disso, 10,3% desses 18,1% são aposentados, que em tese pagaram seus impostos quando em atividade, ou seja, contribuíram devidamente para que o governo lhes compense agora com diferentes serviços. Não são, pois, dependentes de esmolas oficiais.

Sobram apenas 6,9% que de fato não contribuem, mas porque sua renda não atinge o mínimo a partir do qual teriam que pagar.

Ah, falta computar 400 milionários (renda anual de ao menos US$ 77 milhões ou R$ 156 milhões) que, mesmo assim, nada pagaram (dados de 2009).

O problema da fala de Romney é menos o de ter sido leviano sobre os 47% e mais o que ela revela de insensibilidade social.

Ou, como prefere Michael Cohen, pesquisador da The Century Foundation, em artigo para o "Guardian": "Pior que a crueza dos argumentos de Romney é sua notável carência de empatia social. Os EUA fornecem assistência à saúde, à alimentação, à habitação e o que mais se quiser a seus cidadãos não como meio de capturar seus votos, mas porque é fundamental para seu pacto social básico".

Reforça Antonio Caño, correspondente de "El País" em Washington: Romney prefere cultivar "um partido que identifica o novo conservadorismo com um individualismo cruel que não deixa nenhum espaço para a solidariedade ou o trabalho coletivo".

É bom ressaltar que a solidariedade, implícita ou explícita no Estado de Bem-Estar Social, é muito menos acentuada nos Estados Unidos do que na Europa.

Nesta, pelo menos até a eclosão da crise que ainda se arrasta, as prestações sociais não eram vistas como dependência de indivíduos em relação ao governo, mas como obrigação do governo para com os cidadãos, obrigação tanto maior quanto maiores as carências destes.

É, pois, o inverso do "quero que se explodam".

crossi@uol.com.br

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