Contardo Calligaris
Protestos muçulmanos
A facilidade com o qual me sinto
ofendido revela que eu concordo, em parte, com a ofensa que recebi
O VÍDEO "A Inocência dos
Muçulmanos", apesar de sua mediocridade, fez sucesso. Ninguém aguenta ver
aquilo até o fim, mas o vídeo instigou a curiosidade dos internautas quando se
soube que ele era a causa dos violentos protestos que se alastraram pelos
países muçulmanos, nas últimas duas semanas.
Esquecendo os terroristas que se
aproveitaram desses protestos para semear a morte, a visão dos desfiles e dos
quebra-quebras foi instrutiva e desalentadora. Instrutiva por nos explicar,
mais uma vez, a diferença cultural que separa o Ocidente do islã, e desalentadora
porque a esperança de um entendimento recíproco parece pequena.
a) Os cristãos terão dificuldade
em sentir empatia com os muçulmanos indignados pelo vídeo, pelas caricaturas
dinamarquesas de seis anos atrás etc. Afinal, aqui, Jesus é uma marca de calças
jeans e uma personagem de "South Park". No YouTube, encontrei um
grupo francês, "Les Vampires", que, como capa de seu disco sobre a
homossexualidade de Jesus, propõe o Cristo com uma mão pregada na cruz,
enquanto, com a outra, ele se masturba.
Os cristãos se deleitaram com
"O Código da Vinci", um best-seller, que explica que Jesus teve
filhos com Maria Madalena e a igreja nos escondeu tudo isso até hoje. Qual
empatia possível com os que condenaram à morte Salman Rushdie por ter escrito
"Os Versos Satânicos", um grande livro, mais citado que lido, em que
há sequências oníricas das quais eu nunca entendi por que seriam ofensivas para
o islã? Nota: acaba de sair a autobiografia da clandestinidade de Rushdie,
"Joseph Anton, Memórias" (Companhia das Letras).
b) Imaginemos, por um instante,
que eu não me aguente e queira manifestar minha indignação com "Les
Vampires". Uma das últimas coisas que eu faria seria atacar a embaixada da
França.
Entendo que os protestos atuais
passem a ser contra países cuja política seria mais favorável a Israel do que à
Palestina. Mas o fato é que, neles, as massas muçulmanas reagem como se
considerassem que um pensamento é a expressão e a responsabilidade do grupo ao
qual seu autor pertence. No mínimo, o grupo (a nação) seria culpado porque não
sabe disciplinar seus membros.
Ora, prefiro, de longe, aturar
"Les Vampires" a exigir que os Estados se tornem guardiões do que
pensam seus cidadãos.
Já houve épocas (não tão remotas)
em que queimávamos e torturávamos pessoas que pensavam fora dos trilhos da
igreja. Mesmo naquelas épocas, ninguém imaginava que os produtos das
consciências individuais fossem responsabilidade do grupo ou da nação.
c) O comentário mais interessante
que li nestes dias foi a citação, feita por Clóvis Rossi, de Yaron Friedman, no
jornal israelense "Yediot Aharonot": "Na consciência árabe e
muçulmana, Maomé e seus primeiros califas [chefes político-religiosos] do
século 7º simbolizam a idade de ouro do islã e a gênese de um império
árabe-muçulmano que chega ao século 12 na vanguarda do desenvolvimento cultural
mundial".
"Toda ofensa feita ao
profeta é cutucar a lembrança do estatuto de inferioridade no qual se encontra,
desde o século 19, o mundo árabe-muçulmano em relação ao Ocidente."
É quase uma regra: qualquer
suscetibilidade extrema é o sinal de uma fragilidade interna. Em outras
palavras, a facilidade com o qual eu me sinto ofendido revela que eu mesmo devo
concordar, ao menos em parte, com a ofensa que recebi.
Ou seja, a suscetibilidade muçulmana
manifesta que deve existir, na alma muçulmana, um conflito entre o
tradicionalismo religioso e uma aspiração à liberdade em suas manifestações
modernas ocidentais.
d) Alguém perguntará: se estamos
dispostos a aturar qualquer expressão individual, será que, para nós, nada é
sagrado? Será que nenhuma opinião nos ofende a ponto de nos dar vontade, por
exemplo, de manifestar?
Resposta. O que é sagrado para
mim não é tal ou tal outra opinião -ainda menos a minha. O que é sagrado é o
próprio direito de expressar uma opinião e de viver segundo ela manda.
Se uma mulher no Irã queima uma
bandeira dos EUA ou da França, acho que é seu direito. Mas, se ela for
apedrejada por ser adúltera, irei para a rua pedindo que a gente intervenha com
tudo o que temos. Por ser ocidental e moderno, durmo bem com os insultos de
quem pensa diferente de mim. Só não durmo bem com o grito dos indivíduos
impedidos de se expressar e de viver segundo a liberdade de sua consciência.
ccalligari@uol.com.br
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