CLÓVIS
ROSSI
Um só Deus, muitas vozes
O
movimento islamita engloba grande diversidade de ideologias, metas e métodos
Durante
a Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio em Doha (2001), o
então ministro da Saúde José Serra foi abordado por uma jornalista árabe que
queria uma entrevista sobre a chamada "guerra das patentes", um dos
eixos em torno do qual girava a reunião.
Serra
olhou para a moça e disparou: "Você é árabe e está vestida desse jeito?"
A
jornalista vestia uma T-shirt branca discreta e jeans idem. Suponho que Serra
deva ter pensando que mulher árabe usa obrigatoriamente véu islâmico, talvez a
burca.
Conto
esse episódio, obviamente micro, apenas para pontuar o fato de que "o público
e a mídia ocidentais tendem a ser no geral ignorantes a respeito do islã e da
natureza dos movimentos islamitas", como diz Joost Hiltermann, sub-diretor
do Programa para o Oriente Médio e o Norte da África do International Crisis
Group, dedicado à prevenção de conflitos.
Completa
o especialista: "O movimento islamita é muito diverso, com muitas
diferentes ideologias, metas e métodos".
Essa
diferenciação é essencial, se se quiser entender melhor as manifestações dos últimos
dias a pretexto de um filme que ofende o profeta Maomé. A violência empregada
nelas dá a sensação de um levante dos muçulmanos contra o Ocidente ou mais
precisamente os EUA.
Impressão
falsa. Foi, essencialmente, uma agitação salafista (o movimento ultraortodoxo
que pretende viver o islã como nos tempos do profeta; "salaf" em árabe
quer dizer exatamente "predecessor" ou "ancestral").
Tariq
Ramadan, um dos principais acadêmicos do islã no Ocidente, já havia deixado
claro esse aspecto na excelente entrevista que o jornalista Marcelo Ninio fez
com ele, publicada ontem na Folha, ao dizer que os militantes salafistas usaram
o filme "com o objetivo de se apresentar como a única e exclusiva corrente
islâmica".
Os
salafistas não são os únicos nem sequer os majoritários nem a violência é predominante
no islã, como o demonstra a equação assim apresentada por Joost Hiltermann:
"Todos
os militantes da Al Qaeda são salafistas, mas nem todos os salafistas são
membros da Al Qaeda ou de qualquer outra variante de 'guerra santa' violenta;
de fato, a maioria dos salafistas são inteiramente pacíficos".
Mais:
"Embora todos os salafistas sejam muçulmanos, a vasta maioria dos muçulmanos
não são salafistas, o que significa dizer que estamos falando da minoria de uma
minoria, de um grupo extremamente pequeno de pessoas que, no entanto, por sua
extrema violência tem influência desproporcional".
Influência
ainda maior quando se acrescenta a visão de Jean-François Daguzan, diretor-adjunto
da Fundação para a Pesquisa Estratégica de Paris, para o jornal "El País":
a força dos grupos violentos "cresce ante a debilidade do Estado (Líbia) ou
o que se percebe como debilidade dos partidos islamitas no poder (Egito, Tunísia,
Marrocos), que não sabem bem como enfrentá-los, se com dureza ou mediante
negociação".
Tudo
somado, é razoável supor que a galáxia continuará desafiando a compreensão do
Ocidente.
crossi@uol.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário