domingo, 2 de setembro de 2012


FERREIRA GULLAR

Amar o perdido

O menino, hoje um senhor idoso, não esquece o dia em que sua moeda caiu pela fresta do assoalho e sumiu

O quintal, relativamente grande, ficava ao lado da casa e ao fundo das casas vizinhas, de muro baixo. Rente ao muro estavam as bananeiras, onde ele e suas irmãs se embrenhavam, brincando de esconde-esconde. Do lado do quintal, havia uma pitangueira e uma mangueira, cujos ramos se estendiam sobre a cerca que limitava com a residência de um coronel do Exército.

O resto do quintal era coberto de mato-burro, um tipo de vegetação que chegava à cintura dele e encobria a irmãzinha menor. Ali, certo dia, descobriu um ninho cheio de ovos da galinha-d'angola que, com seu parceiro, habitava o lugar.

Mas, atravessando um pequeno portão, ao lado da casa, chegava-se a um quintal menor, de terra batida, sem vegetação, limitado, de um lado pela casinhola do banheiro e, de outro, pela varanda que se estendia até a sala de jantar. À esquerda, ficava o muro coberto de um musgo verde brilhante.

Este quintal menor era o domínio de um galo de crista vermelha e penas marrons, que caminhava garboso, exibindo suas esporas e observando com aqueles olhos redondos, especialmente as quatro galinhas que constituíam sua corte.

Além delas, havia ali um frango, de penugem incipiente, que às vezes se atrevia a cantar de galo e era logo reprimido pelo rei do terreiro, que partia para cima dele a bicadas. O menino, que simpatizava com o frango, intervinha na briga e evitava a agressão.

A família era, no total, dez pessoas, o pai, a mãe e sete filhos (entre meninas e meninos) e uma tia da mãe, que cuidava da casa. O pai, comerciante ambulante, um dia apareceu na casa com um animal esquisito, que parecia um bezerro, mas não era, pois, além do mais, tinha o focinho dividido em dois. Era uma anta.

A mãe, ao ver aquele animal estranho no quintal, ficou perplexa. "Que diabo de bicho é esse que você trouxe para nossa casa?", perguntou ela. Ele respondeu que o tomara de um sujeito que lhe devia dinheiro e não pagara. "E você acha que alguém vai comprar um bicho esquisito como esse, de dois focinhos, e que não serve para nada?", ela perguntou.

As crianças da vizinhança subiam no muro para espiar o animal. Os adultos chegavam até o portão, espiavam e saíam rindo e fazendo troça. A mãe deu um ultimato ao marido: ou ela ou a anta. Ele então decidiu levar a anta não se sabe para onde. Quando subiu a rua, puxando-a pelo cabresto, a molecada o seguiu, gritando e rindo, muito excitada.

A casa era grande, tinha vários quartos, todos assoalhados. Assoalhos antigos, de tábuas corridas, debaixo das quais, às vezes, surgiam ratos, que ali se metiam pela fresta de alguma tábua apodrecida. Se saíam, eram perseguidos pelos gatos que habitavam a casa.

Exceto os pais, que dormiam numa cama de casal, todos os demais dormiam em redes armadas nos cantos dos quartos e, nessas redes, se embalavam, às vezes cantarolando, às vezes disputando lugar com um ou outro irmão. Com frequência, algum deles se estatelava no chão e saía chorando a procurar a mãe, para se queixar.

Faz muitos e muitos anos que isso aconteceu, embora a casa ainda exista e os assoalhos de tábuas corridas tenham sido substituídos por piso de cimento. Nem o pai nem a mãe existem mais. As meninas e os meninos cresceram, foram cada um inventar sua própria vida: casaram-se, tiveram filhos e netos e alguns mudaram até mesmo de cidade. Uns poucos continuam na mesma casa, cujo quintal foi vendido para uma família, que ali construiu sua casa.

O menino, que hoje é um senhor idoso, não esquece o dia em que uma moeda sua caiu pela fresta do assoalho e sumiu. Ele não se conformou. Com um pé de cabra, arrancou uma das tábuas que estava quase solta e mergulhou debaixo do assoalho. Teve uma surpresa: foi como se tivesse passado a outro planeta, já que o chão, ali embaixo, era como um talco negro, em que seus pés afundaram até os tornozelos.

Em pânico, conseguiu escapar daquele solo de pó, onde sua pequena moeda se perdera para sempre. Mas, pelo resto da vida, de quando em vez, em sonho, voltava, em prantos, àquele território lunar em busca da pequena moeda para sempre perdida.

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