FERREIRA
GULLAR
Amar o perdido
O
menino, hoje um senhor idoso, não esquece o dia em que sua moeda caiu pela
fresta do assoalho e sumiu
O
quintal, relativamente grande, ficava ao lado da casa e ao fundo das casas
vizinhas, de muro baixo. Rente ao muro estavam as bananeiras, onde ele e suas
irmãs se embrenhavam, brincando de esconde-esconde. Do lado do quintal, havia
uma pitangueira e uma mangueira, cujos ramos se estendiam sobre a cerca que
limitava com a residência de um coronel do Exército.
O
resto do quintal era coberto de mato-burro, um tipo de vegetação que chegava à cintura
dele e encobria a irmãzinha menor. Ali, certo dia, descobriu um ninho cheio de
ovos da galinha-d'angola que, com seu parceiro, habitava o lugar.
Mas,
atravessando um pequeno portão, ao lado da casa, chegava-se a um quintal menor,
de terra batida, sem vegetação, limitado, de um lado pela casinhola do banheiro
e, de outro, pela varanda que se estendia até a sala de jantar. À esquerda,
ficava o muro coberto de um musgo verde brilhante.
Este
quintal menor era o domínio de um galo de crista vermelha e penas marrons, que
caminhava garboso, exibindo suas esporas e observando com aqueles olhos
redondos, especialmente as quatro galinhas que constituíam sua corte.
Além
delas, havia ali um frango, de penugem incipiente, que às vezes se atrevia a
cantar de galo e era logo reprimido pelo rei do terreiro, que partia para cima
dele a bicadas. O menino, que simpatizava com o frango, intervinha na briga e
evitava a agressão.
A
família era, no total, dez pessoas, o pai, a mãe e sete filhos (entre meninas e
meninos) e uma tia da mãe, que cuidava da casa. O pai, comerciante ambulante,
um dia apareceu na casa com um animal esquisito, que parecia um bezerro, mas não
era, pois, além do mais, tinha o focinho dividido em dois. Era uma anta.
A mãe,
ao ver aquele animal estranho no quintal, ficou perplexa. "Que diabo de
bicho é esse que você trouxe para nossa casa?", perguntou ela. Ele
respondeu que o tomara de um sujeito que lhe devia dinheiro e não pagara.
"E você acha que alguém vai comprar um bicho esquisito como esse, de dois
focinhos, e que não serve para nada?", ela perguntou.
As
crianças da vizinhança subiam no muro para espiar o animal. Os adultos chegavam
até o portão, espiavam e saíam rindo e fazendo troça. A mãe deu um ultimato ao
marido: ou ela ou a anta. Ele então decidiu levar a anta não se sabe para onde.
Quando subiu a rua, puxando-a pelo cabresto, a molecada o seguiu, gritando e
rindo, muito excitada.
A
casa era grande, tinha vários quartos, todos assoalhados. Assoalhos antigos, de
tábuas corridas, debaixo das quais, às vezes, surgiam ratos, que ali se metiam
pela fresta de alguma tábua apodrecida. Se saíam, eram perseguidos pelos gatos
que habitavam a casa.
Exceto
os pais, que dormiam numa cama de casal, todos os demais dormiam em redes
armadas nos cantos dos quartos e, nessas redes, se embalavam, às vezes
cantarolando, às vezes disputando lugar com um ou outro irmão. Com frequência,
algum deles se estatelava no chão e saía chorando a procurar a mãe, para se
queixar.
Faz
muitos e muitos anos que isso aconteceu, embora a casa ainda exista e os
assoalhos de tábuas corridas tenham sido substituídos por piso de cimento. Nem
o pai nem a mãe existem mais. As meninas e os meninos cresceram, foram cada um
inventar sua própria vida: casaram-se, tiveram filhos e netos e alguns mudaram
até mesmo de cidade. Uns poucos continuam na mesma casa, cujo quintal foi
vendido para uma família, que ali construiu sua casa.
O
menino, que hoje é um senhor idoso, não esquece o dia em que uma moeda sua caiu
pela fresta do assoalho e sumiu. Ele não se conformou. Com um pé de cabra,
arrancou uma das tábuas que estava quase solta e mergulhou debaixo do assoalho.
Teve uma surpresa: foi como se tivesse passado a outro planeta, já que o chão,
ali embaixo, era como um talco negro, em que seus pés afundaram até os
tornozelos.
Em pânico,
conseguiu escapar daquele solo de pó, onde sua pequena moeda se perdera para
sempre. Mas, pelo resto da vida, de quando em vez, em sonho, voltava, em
prantos, àquele território lunar em busca da pequena moeda para sempre perdida.
Nenhum comentário:
Postar um comentário