CRISTIANE
SEGATTO
O Estado e a mulher que aborta
Essa
é a mais emocional das questões políticas e morais que o Brasil enfrenta. É possível
chegar a um consenso?
Em 2007,
o médico José Gomes Temporão assumiu o Ministério da Saúde com uma demonstração
de audácia. Foi a primeira autoridade a defender publicamente um plebiscito
sobre a legalização do aborto. Apostei que duraria pouco no cargo. Felizmente,
perdi a aposta. Seria lamentável se, em pleno século XXI, um ministro fosse
obrigado a deixar o posto por estimular a discussão em torno de uma das
principais causas de mortalidade materna no país.
O
ministro não perdeu o cargo, mas o assunto se perdeu. Bem ao estilo brasileiro,
a verdade inconveniente, difícil, impopular foi evitada. Não era um tema agradável,
principalmente quando uma eleição presidencial se aproximava. Azar das milhares
de mulheres que, a cada ano, sofrem graves consequências ou morrem em decorrência
de abortos clandestinos. Quase todas são pobres, sem acesso a clínicas confortáveis,
anestesia, assepsia e outros cuidados médicos e psicológicos reservados às
mulheres de classe média-alta que decidem abortar.
Nesta
semana, o assunto voltou a ser notícia. O Ministério da Saúde discute a adoção
de medidas para proteger a saúde das mulheres que abortam clandestinamente. A
ideia é reproduzir no Brasil um modelo aplicado no Uruguai desde 2004.
Em
tese, funcionaria assim: se uma paciente chegar a uma unidade de saúde dizendo
que pretende abortar, os médicos devem submetê-la a exames e explicar os riscos
envolvidos num aborto clandestino. E também falar sobre a possibilidade de
levar a gestação adiante e, ao final, entregar o bebê para adoção.
Caso
a mulher esteja decidida a interromper a gravidez, o dever do médico seria
perguntar como ela pretende abortar. E explicar que alguns métodos são
altamente arriscados. É o caso, por exemplo, da introdução no útero de arame ou
madeira por meio de uma sonda de borracha – um artifício tosco, mas bastante
difundido nas periferias brasileiras.
O
instrumento é colocado no útero por enfermeiras ou pessoas sem nenhuma formação
na área de saúde. A mulher é instruída a voltar para casa e retirá-lo depois de
24 horas. Quando começar a sangrar, deve procurar um hospital público dizendo
que sofreu um aborto espontâneo. Muitas mulheres sofrem infecção, hemorragia,
perdem o útero ou morrem. O Ministério da Saúde quer evitar que barbaridades
como essa continuem acontecendo.
Outro
ponto em discussão é o uso do misoprostol (Cytotec), remédio contra úlceras gástricas
que, como efeito colateral, pode provocar sangramento e aborto. Ele é considerado
o método abortivo mais usado no país. Apesar de ter venda restrita, é facilmente
adquirido, de forma ilegal, pela internet. Se usado incorretamente, pode
provocar hemorragia e levar à morte.
Segundo
a proposta em discussão, os médicos passariam a orientar as mulheres decididas
a tomar o remédio. Explicariam como usá-lo e qual é a dose ideal, de forma a
reduzir o risco de complicações. É possível que o governo crie uma cartilha
para orientar os profissionais sobre o que fazer quando atendem uma paciente
antes ou depois do aborto clandestino.
Se o
plano do Ministério da Saúde for levado adiante, o embate com os grupos
religiosos no Congresso será inevitável. Virão à tona os mesmos argumentos
usados quando o debate gira em torno da legalização do aborto. Quem é contra
argumenta que todos têm direito à vida (não só a mulher) e que a vida começa no
momento da concepção. Defende também que o governo invista em planejamento
familiar em vez de acolher a mulher que pretende abortar.
O
outro lado sustenta que a liberdade de escolha da mulher é um direito inviolável.
Afirma também que a vida só deve ser protegida pelo Estado a partir da formação
do sistema neurológico do feto (por volta das 18 semanas). E, sobretudo, que o
aborto é uma questão de saúde pública.
A
cada ano, cerca de 220 mil mulheres procuram o SUS para fazer raspagens do
revestimento uterino, um procedimento chamado de curetagem, necessário depois
de abortos. O Ministério da Saúde gasta cerca de R$ 35 milhões por ano com a
internação de mulheres que sofreram complicações por causa de abortos ilegais.
É preciso
olhar a realidade pela perspectiva dessas mulheres e dos profissionais de saúde
que, todos os dias, são confrontados com as consequências da clandestinidade do
aborto. Fingir que os danos sofridos por essas mulheres não existem é omissão
de socorro. Algo incompatível com a função dos médicos e com o juramento que
fizeram ao receber o diploma. Médico não é delegado. Médico não é juiz. Sua
obrigação é reduzir o sofrimento da cidadã que o procura – e não prejulgá-la,
escorraçá-la, abandoná-la.
O
aborto é um fenômeno social que não vai deixar de existir apenas porque é proibido.
Tal qual o uso de drogas. Do ponto de vista da saúde pública, cabe ao Estado
encontrar formas de reduzir os danos sofridos por quem o pratica.
A
discussão é urgente e mais que bem-vinda. Há argumentos respeitáveis de ambos
os lados. Será que algum dia o debate poderá ocorrer em alto nível – sem as
baixarias e as distorções habituais? Uma reflexão sobre o assunto foi feita
pelos médicos Aníbal Faúndes e José Barzelatto no livro O drama do aborto: em
busca de um consenso (Editora Komedi). Reproduzo aqui um trecho:
As
pessoas razoáveis têm diferentes crenças e pontos de vista acerca do que é certo
e do que é errado. Dessa forma, aceitar a existência de um “pluralismo razoável”
parece ser um requisito para as sociedades democráticas. Além disso, pessoas
razoáveis, com diferentes visões gerais, podem identificar e expandir algumas
ideias e valores comuns.
Identificar
esse consenso básico que orienta a vida em sociedade, não interfere na
liberdade dos indivíduos nem é obstáculo para que cada grupo diferente de
pessoas mantenha a sua própria visão de moralidade e guie suas ações pessoais
por essa visão.
Um “consenso
básico”, entretanto, lhes permite aceitar que outras pessoas possam atuar
diferentemente, dentro de limites razoáveis, seguindo sua própria visão global
do que é certo e do que é errado.
Os
autores propõe nove pontos para orientar o diálogo e levar a sociedade a um
consenso. Um breve resumo:
1) O
aborto inseguro é uma tragédia para a saúde pública. Uma tragédia que poderia
ser evitada.
2) O
respeito pelas pessoas é um princípio ético básico aceito pela maioria. É um
dos fundamentos da democracia. Inclui a liberdade de crença religiosa e o
respeito pelas diferentes crenças. As sociedades que pretendem definir um
consenso prático sobre aborto devem incluir diferentes sistemas de valores e
diferentes perspectivas religiosas, entendendo que nenhuma religião pode impor
seus valores sobre aqueles que não professam essa fé.
3) As
mulheres são seres humanos com os mesmos direitos que os homens, incluindo seu
direito a decidir livre e responsavelmente acerca de sua sexualidade.
4) Educação
em saúde sexual e reprodutiva sem preconceitos não leva a atividade sexual
indiscriminada, mas promove uma conduta sexual mais responsável e reduz as
gravidezes não desejadas e os abortos.
5) Acesso
fácil a métodos contraceptivos efetivos, por meio de serviços de boa qualidade,
não promove promiscuidade e é um dos meios mais eficazes de reduzir os abortos.
6) Não
é raro que as mulheres provoquem um aborto por falta de apoio familiar e social.
As sociedades devem desenvolver ações efetivas de apoio às mulheres grávidas que
desejam realizar a função exclusivamente feminina de levar a gravidez até o
termo permitindo a continuidade da espécie humana.
7) Fazer
com que o aborto seja um crime, e penalizar a mulher que aborta não reduz o número
de abortos, mas leva a um grande aumento do sofrimento humano e à morte, dando
espaço a um mercado de abortos clandestinos e inseguros. As leis que tratam
deste assunto devem obedecer a limites socialmente aceitáveis.
8) Quando
uma mulher preenche as condições necessárias para obter um aborto de acordo com
a lei de seu país, ela deve ter fácil acesso a serviços de aborto seguro.
9) A
maior parte das mulheres tem gravidezes não desejadas e abortos provocados como
resultado da incapacidade da sociedade de proteger seus direitos. O aborto é uma
decisão tomada como última alternativa. A sociedade deve assegurar que as
mulheres que sofrem complicações de aborto legal ou ilegal sejam tratadas com
todo o respeito e recebam atendimento da mesma qualidade que qualquer outra
pessoa que procure ajuda médica nos serviços de saúde.
Alguns
desses raciocínios parecem óbvios. A realidade tem mostrado que, infelizmente,
ainda não são. E você? Acha que é possível que a sociedade brasileira chegue a
um consenso sobre o aborto?
Cristiane
Segatto escreve às sextas-feiras
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