segunda-feira, 18 de junho de 2012



18 de junho de 2012 | N° 17104
L. F. VERISSIMO

O silêncio de Cícero

Paris – Garry Wills é um historiador americano que recentemente lançou um livro chamado Rome and Rhetoric. Wills é notoriamente religioso, o que não o impede de ser um pensador independente e um ensaísta instigante. Seu novo livro é sobre Júlio César, de Shakespeare, e o efeito que uma educação elisabetana, com ênfase nos clássicos e na retórica, teve nas tragédias romanas do poeta como Titus Andronicus, Coriolano e Júlio César.

Wills começa estranhando que esta última se chame A Tragédia de Júlio César, quando deveria se chamar A Tragédia de Brutus, que é o seu principal personagem. Júlio César é assassinado no começo da peça. Brutus, segundo Wills, tem cinco vezes mais falas do que ele. Mas mais estranho do que um personagem que morre tão cedo dar nome à peça é a importância de um personagem que mal aparece em cena e, na contabilidade do Wills, tem escassas nove linhas para dizer.

Cícero domina a peça mas “aparece” mais nas falas dos outros, nas referências e na reverência a ele, do que fisicamente. Os conspiradores discutem se devem ou não convidar Cícero para participar do assassinato de César, notoriamente seu inimigo, inclusive para que seus cabelos brancos deem mais respeitabilidade à empreitada. “His silver hairs will purchase us a good opinion”, diz um dos conspiradores. Seus cabelos prateados nos comprarão uma boa opinião. Mas decidem poupar o filósofo da sangueira.

Uma constante na peça é a especulação sobre o que Cícero pensará e dirá, na preparação do assassinato e na convulsão que se segue. Grande orador, mestre da retórica, Cícero está na cabeça de todo mundo, e o silêncio retumbante que Shakespeare lhe dá não deixa de ser uma forma de respeitar sua reputação de sábio e de reserva moral.

O incorruptível Cícero e seu silêncio pairam sobre Roma em ebulição. Até que, com os cachorros da guerra soltos, ele também é atingido pela convulsão atiçada por Marco Antônio para vingar a morte de César. Marco Antônio manda matá-lo e pede que lhe tragam sua cabeça e sua mão direita, com a qual ele escrevia suas críticas.

Cícero não é exatamente um bom exemplo político. Defendia uma república governada por uma elite de iluminados. Mas faz falta – no Brasil atual, por exemplo, para dar um pulo na história – um Cícero, com ou sem cabelos prateados, para ser uma referência de respeitabilidade na política e um exemplo moral indiscutível. E dominar uma era só com sua existência, como o Cícero de Shakespeare dominava uma peça.

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