17
de junho de 2012 | N° 17103
PAULO
SANT’ANA
Louça quebrada
Para
mim, a maior frase de Jean-Paul Sartre, filósofo francês existencialista, é,
logicamente, a frase que cabe mais em minha vida, na minha história de vida. Eis
a frase: “Não importa o que fizeram com você. O que importa é o que você faz
com aquilo que fizeram com você”.
Evidentemente,
tendo tido uma infância desastrada, apaixonei-me por esse pensamento de Sartre.
É possível
que eu tenha modificado para muito melhor o pior que se desenhava para minha
vida, em face de minha infância infeliz.
Mas
o que eu queria dizer, já que sexta-feira, quando escrevi esta coluna, eu
estava completando 73 anos de idade, é que eu posso ter modificado o meu
destino, como ensinou Sartre, mas não pude mexer numa coisa: na cicatriz
aviltante que restou na minha personalidade pelas agruras da infância.
E,
sempre que olho no espelho, dou de cara com essa cicatriz, que me persegue até hoje,
faz 60 anos.
Evidentemente,
no balanço que faço da minha vida constam muitas conquistas. E, por desaviso
estatístico, não constam os meus fracassos. Só que eles foram retumbantes. E
todos eles foram em consequência das marcas sofridas deixadas pela minha infância.
O
maior de todos os meus fracassos foi um medo permanente que sempre tive de
fracassar.
Procurei
afanosamente durante toda a minha vida livrar-me desse medo. Mas eu estava
agrilhoado a uma terrível ameaça que recebi na infância: a pessoa que era mais
importante em minha vida, um dia, me disse: “Nunca serás nada na vida”. E em
seguida me encheu de ofensas que feriram a minha dignidade infantil.
Daí redundou
essa falta de iniciativa para tanta coisa que poderia ser ferramenta que me
alavancasse para situações melhores. E aquele medo de fracassar me perseguindo
como um acicate por aquela maldição.
Sei,
como disse Sartre, que passei por cima do que fizeram de mim e o que importa é o
que eu fiz do que fizeram de mim. Mas temo que eu poderia ter feito algo ainda
melhor, não fosse o punhal daquela praga cravado no meu peito durante todos os
anos da minha vida.
Esses
dias, escrevi aqui que não há como se fugir das lembranças da infância. E não
se foge das lembranças más e a gente se protege e se fortalece com as lembranças
boas da infância.
Como
tive uma infância triste, obviamente só me atormentam as más lembranças da infância.
Recebi
muitas e muitas mensagens de leitores que me mandaram dizer que também estão
acorrentados às lembranças da infância.
Que
pelo menos para algumas pessoas o que eu estou dizendo sirva de exemplo, me
atrevo a dizer de lição: que procuremos pelo melhor dos nossos esforços, fazer
tudo para que as crianças não venham a ter no futuro más lembranças.
O
período mais importante da vida é a infância. E que os pais tenham a consciência
sólida e inarredável de que devem cuidar de seus filhos, na infância deles,
como cristais que jamais podem ser quebrados.
Uma
ofensa ou uma agressão a uma criança terá consequências irreparáveis. E eu fui
quebrado por um elefante que invadiu a loja de cristais em que eu me encontrava
e rachou irremediavelmente a minha louça.
Eu
tentei me consertar a mim próprio. Mas não há nada que um adulto possa
consertar que tenha sido fraturado em sua infância.
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