sábado, 16 de junho de 2012



17 de junho de 2012 | N° 17103
PAULO SANT’ANA

Louça quebrada

Para mim, a maior frase de Jean-Paul Sartre, filósofo francês existencialista, é, logicamente, a frase que cabe mais em minha vida, na minha história de vida. Eis a frase: “Não importa o que fizeram com você. O que importa é o que você faz com aquilo que fizeram com você”.

Evidentemente, tendo tido uma infância desastrada, apaixonei-me por esse pensamento de Sartre.

É possível que eu tenha modificado para muito melhor o pior que se desenhava para minha vida, em face de minha infância infeliz.

Mas o que eu queria dizer, já que sexta-feira, quando escrevi esta coluna, eu estava completando 73 anos de idade, é que eu posso ter modificado o meu destino, como ensinou Sartre, mas não pude mexer numa coisa: na cicatriz aviltante que restou na minha personalidade pelas agruras da infância.

E, sempre que olho no espelho, dou de cara com essa cicatriz, que me persegue até hoje, faz 60 anos.

Evidentemente, no balanço que faço da minha vida constam muitas conquistas. E, por desaviso estatístico, não constam os meus fracassos. Só que eles foram retumbantes. E todos eles foram em consequência das marcas sofridas deixadas pela minha infância.

O maior de todos os meus fracassos foi um medo permanente que sempre tive de fracassar.

Procurei afanosamente durante toda a minha vida livrar-me desse medo. Mas eu estava agrilhoado a uma terrível ameaça que recebi na infância: a pessoa que era mais importante em minha vida, um dia, me disse: “Nunca serás nada na vida”. E em seguida me encheu de ofensas que feriram a minha dignidade infantil.

Daí redundou essa falta de iniciativa para tanta coisa que poderia ser ferramenta que me alavancasse para situações melhores. E aquele medo de fracassar me perseguindo como um acicate por aquela maldição.

Sei, como disse Sartre, que passei por cima do que fizeram de mim e o que importa é o que eu fiz do que fizeram de mim. Mas temo que eu poderia ter feito algo ainda melhor, não fosse o punhal daquela praga cravado no meu peito durante todos os anos da minha vida.

Esses dias, escrevi aqui que não há como se fugir das lembranças da infância. E não se foge das lembranças más e a gente se protege e se fortalece com as lembranças boas da infância.

Como tive uma infância triste, obviamente só me atormentam as más lembranças da infância.

Recebi muitas e muitas mensagens de leitores que me mandaram dizer que também estão acorrentados às lembranças da infância.

Que pelo menos para algumas pessoas o que eu estou dizendo sirva de exemplo, me atrevo a dizer de lição: que procuremos pelo melhor dos nossos esforços, fazer tudo para que as crianças não venham a ter no futuro más lembranças.

O período mais importante da vida é a infância. E que os pais tenham a consciência sólida e inarredável de que devem cuidar de seus filhos, na infância deles, como cristais que jamais podem ser quebrados.

Uma ofensa ou uma agressão a uma criança terá consequências irreparáveis. E eu fui quebrado por um elefante que invadiu a loja de cristais em que eu me encontrava e rachou irremediavelmente a minha louça.

Eu tentei me consertar a mim próprio. Mas não há nada que um adulto possa consertar que tenha sido fraturado em sua infância.

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