CONTARDO
CALLIGARIS
Arrastões
Hoje,
é impossível invocar um aumento da diferença econômica para explicar a volta da
criminalidade
Um
amigo, dono de um restaurante paulistano tradicional, não perde a piada. Ele me
explicou por que sua categoria está preocupada com a recente onda de arrastões:
é que pensávamos, ele me disse, que assaltar os clientes fosse prerrogativa
exclusiva da gente.
Piada
à parte, na semana passada, a TV Folha me entrevistou sobre os arrastões que
estão acontecendo logo em São Paulo -onde sair para jantar é o programa
convivial por excelência, e o restaurante é um lugar tão familiar quanto a casa
da gente.
Mesmo
sem considerar essa especificidade paulistana, o assalto à mesa é sempre
perturbador. A oralidade é o prazer mais primitivo, cuja "lembrança"
(digamos assim) permanece em nós como modelo de qualquer outro prazer (por
isso, aliás, é difícil parar de fumar ou de comer: as tentações orais são as
mais irresistíveis).
Consequência:
a experiência de ser assaltado no meio de uma boa refeição é comparável à de um
bebê que recebesse um cascudo bem na hora em que ele está mamando, de olhos
fechados, perdidamente feliz.
Enfim,
a reportagem suspeitou que os arrastões ganhassem espaço na mídia por serem
contra restaurantes na moda. Será que as classes C e D são excluídas das pautas
da mídia?
A
questão me levou de volta aos anos 1980 e 90, quando quase todos os bem-pensantes
pareciam concordar com a suposição de que a causa da apavorante criminalidade
brasileira fosse a também apavorante diferença social. Essa ideia (desmentida
por qualquer pesquisa séria) voltava, como um joão-bobo, a cada vez que se
tratasse de explicar a insegurança nas nossas ruas.
Para
proteger essa tese falida, a gente (eu mesmo cooperei) insistia na distinção
entre diferença econômica e exclusão: a diferença, por maior que fosse, não
seria causa de criminalidade, enquanto a exclusão social, ela sim, produziria
criminalidade, pois, afinal, quem é ou se sente excluído não pertence à comunidade
-e, se não pertenço à comunidade, por que eu respeitaria suas leis? Para o
excluído, as ditas forças da ordem não teriam legitimidade, mas seriam uma espécie
de exército estrangeiro de ocupação. Para ele, o crime seria, então, um ato de
resistência? "Mamma mia."
Mesmo
a ideia de uma relação entre criminalidade e exclusão mal resiste à prova dos
fatos. Mas tanto faz: o que importa é que, hoje, no Brasil, é difícil invocar
um aumento da diferença econômica ou da exclusão para explicar a volta da
criminalidade.
De
fato, sempre soubemos que a criminalidade não é um efeito da diferença econômica,
nem da exclusão, mas adorávamos essa ideia porque ela satisfazia tanto nossas
aspirações de clareza (temos uma criminalidade absurda, mas "sabemos"
por quê) quanto nossos anseios de justiça (a criminalidade compensa a
iniquidade social).
A
criminalidade brasileira assim explicada não precisava de um plano de ação: a
culpa era nossa, e, portanto, podíamos nos resignar a sermos "justamente"
assaltados (ou quem sabe mortos) por sermos cúmplices de um sistema "injusto".
Aguentaríamos a violência e a inexistência de um espaço público frequentável
porque assim expiaríamos o pecado original da diferença social.
Você
não acha que a violência dos anos 1980 e 90 fosse aceita como uma necessária
penitência depois da confissão? Certo, havia outras razões por essa tolerância
da criminalidade: uma delas é que as ditas elites econômicas eram tão
estrangeiras ao país quanto os excluídos -não havia problema em entregar ruas e
esquinas aos bandidos, contanto que a residência (real, psíquica ou sonhada) das
elites fosse em Miami, Nova York ou Paris.
Seja
como for, a prova dessa aceitação é que nenhum político nacional dos anos 1980
ou 90, nem mesmo um demagogo, apresentou-se como porta-voz de um grande plano
de segurança pública. Com a verbosa exceção da "Rota na rua" de Maluf
em 2002, parece que um verdadeiro projeto de segurança nunca foi prioritário (aparentemente,
porque tal projeto não prometia dividendos eleitorais suficientes).
Pois
bem, felizmente, nos últimos dez anos, a diferença social diminuiu, assim como
diminuiu a exclusão. Portanto, não é possível explicar a criminalidade crescente
pela diferença social, que não está crescendo.
Talvez,
agora, possamos começar a lidar realmente com o problema da segurança pública
no Brasil, sem que nossos conselheiros sejam a culpa e a necessidade de
autopunição.
ccalligari@uol.com.br
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