IVAN
MARTINS
Os traficantes do amor
Estamos
cercados por uma indústria que explora a nossa carência
Na
minha mesa de trabalho há uma rosa amarela do dia dos namorados. Entraram aqui
um fortão e uma loirinha, vestidos de anjo, e deixaram o presente em nome de
uma marca de cerveja. Achei engraçado, mas, assim que eles saíram, bateu certa
melancolia. Como é fácil banalizar as coisas que nos comovem. Como é simples
transformar em clichê – ou babaquice – os sentimentos terríveis que definem a
nossa humanidade.
Olhe
em volta: estamos cercados pela palavra amor.
Há um
milhão de livros com esse título, dez milhões de músicas com esse refrão,
centenas de filmes e um batalhão diário de novelas que trata do assunto. Pela
quantidade de produtos amorosos que nos oferecem, é inevitável concluir que
consumimos mais amor do que cerveja, chocolate e televisores de tela plana. Talvez
um pouco menos que celulares.
Nosso
apetite por amor não tem limites. Nossa sede de amor jamais acaba. Somos
carentes insaciáveis. Sonhamos com o amor todas as noites. Acordamos
encharcados de imagens doloridas. Dentro de nós se agita um mar de memórias que
tem como centro as nossas experiências de afeto. Velhas, remotíssimas, e
recentes. Elas nos movem de forma inconsciente. Somos filhos, somos irmãos,
somos amigos, somos amantes, somos pais e mães. Todos nós. A cola que liga
todas essas situações é o amor.
Começamos
a receber amor ainda minúsculos, nos braços da mãe, e nunca mais paramos. Ele
nos constitui emocionalmente, como os músculos e os ossos nos formam
fisicamente. É parte essencial de nós e precisa ser reposto, realimentado,
revivido a cada dia, a cada momento, em um processo que, a rigor, nunca tem fim.
Um
alienígena que chegasse à Terra iria perceber, em dois minutos, nossa abissal
vulnerabilidade. Além de água, alimento, abrigo, precisamos desesperadamente de
amor - em várias formas, em qualquer forma na verdade. Somos viciados nele. Erguemos
nossa vida em torno dele. Do erotismo violento da adolescência aos sentimentos
suaves da velhice, nossa existência é uma longa experiência amorosa – ou uma
busca desesperada, e muitas vezes cega, muitas vezes infrutífera, pelo amor.
É por
isso que me incomoda a banalização comercial do sentimento. Ela me parece uma
covardia, quase uma canalhice. Algo como oferecer luz a um cego. Diante do
amor, somos todos ingênuos, frágeis, facilmente enganáveis. É simples nos vender
qualquer coisa, nos iludir com qualquer promessa. Estamos, desde crianças, atrás
da próxima dose dessa droga – e, às vezes, tenho a sensação de estarmos cercado
de traficantes que não entregam a mercadoria. Nem poderiam.
O
que tem o bumbum da Scarlett?
Nossos
verdadeiros sentimentos são obscuros e sombrios, quase impossíveis de serem
saciados. Eles não cabem nos formatos pré-moldados da indústria do amor. Pegue
o caso da mulher que matou e destrinchou o marido uns dias atrás. Havia amor
ali. Amor na forma de ciúme. Amor próprio. Amor de mãe que temia ser separada
da filha. Mas não é disso que a marca de cerveja quer falar no dia dos
namorados.
A
história de Elize Matsunaga precisa de um filme europeu pesado, triste, não
comercial, daqueles que nos expulsam da sala de cinema com a mesma força com
que mergulham dentro de nós.
Diante
do tamanho das nossas necessidades, e da nossa imensa complexidade, a indústria
do amor está fadada a nos desapontar. Ela oferece música para um momento de
dor, mas mil músicas são incapazes de nos consolar quando acabamos de ser
abandonados. Ela nos dá lindas histórias de amor, mas quem pode com elas quando
está coberto por um manto intransponível de medo e tristeza?
O
paradoxo do amor público, industrial, feliz, multiplicado nas redes sociais e
nas salas de Multiplex, é que as nossas experiências realmente importantes são
incomunicáveis e intransferíveis. Apesar do estardalhaço social, estamos
sozinhos frente ao amor.
Cabe
a cada um de nós encontrá-lo, vivê-lo ou perdê-lo intimamente. É inevitável
gemer sozinho no escuro, cercado de silêncio. O pessoal da rosa amarela não
estará disponível se você precisar deles.
Ivan
Martins escreve às quartas-feiras
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