sábado, 30 de junho de 2012



30 de junho de 2012 | N° 17116
LUÍS AUGUSTO FISCHER

Homo fictus

Tem aquela superstição da estatística: se a gente colocar um macaco por tempo suficiente diante de um teclado de computador, em algum momento ele será capaz de escrever, palavra por palavra, o Hamlet, de Shakespeare.

Alguns limites dessa hipótese já são conhecidos, especialmente o fato de macacos serem mortais, e portanto não disporem de tempo suficiente – mil anos? Um milhão? – para a tarefa. É sério: tem gente que já testou essa especulação. O resultado não foi muito animador: saíam linhas como sssssssssssssssssstssssssssm,,m, ou algo assim.

O caso é que a concepção e a redação do Hamlet são mais do que acerto casual. Há algo de muito profundo na prática de conceber e contar histórias. Mais profundo do que o abismo das implicações psicológicas e sociais, para indivíduos e grupos.

É bem possível que contar e ouvir histórias, viver de ficção, seja resultado de um processo adaptativo: em algum momento-chave de nossa trajetória sobre as duas patas traseiras, os ancestrais contadores de história e seus ouvintes atentos devem ter levado vantagem sobre os sem-imaginação. E eis-nos aqui, vivendo intensamente o mundo da ficção, no romance ou na telenovela, na canção ou na propaganda de margarina.

O autor desse argumento é Johnathan Gottschall, norte-americano, professor de literatura. Li a notícia na edição de fim de semana do jornal Valor Econômico e me fui atrás da conversa dele, no site com seu nome. Ali, se pode ler de e sobre seu livro The Storytelling Animal – How Story Make us Human, ou seja: O Animal Contador de Histórias – Como a Ficção nos Torna Humanos. (Ele usa story, e não ficção, que adotei porque sou inimigo pessoal do termo estória.)

Diz um trecho da apresentação (em tradução rápida): “Este livro é sobre o primata Homo fictus (Homem Ficcionalizador), o grande símio com mente contadora de histórias. Você pode não perceber, mas você é uma criatura do imaginário reino chamado Terra do Nunca. Ela é sua casa, e antes de morrer você vai passar décadas lá. Se você não se deu conta antes, não se desespere: ficção é para os humanos como água para os peixes – totalmente envolvente e não muito perceptível. Enquanto seu corpo está sempre fixado em um ponto particular do espaço-tempo, sua mente é sempre livre para circular por terras de faz de conta. E consegue”.

Isso tudo reforça a convicção de que vale a pena insistir com a literatura. Tanto que esbocei mais uma lista de argumentos a favor dela, lista nascida de uma conversa pública na Feira do Livro de Canoas, em que estive ao lado do amigo Sergius Gonzaga.

Seis teses

1. PROFUNDIDADE. A literatura faz parte da nossa vida de modo essencial. Gottschall fala da narrativa, termo que engloba romance, conto, teatro, memória etc., mas creio que podemos incluir o território da poesia, que não tem compromisso necessário com o relato de histórias. Poesia tem outra têmpera essencial: o poeta (no poema mesmo, ou em qualquer texto em que possa expressar-se a índole poética) não passa correndo sobre a linguagem-ponte de modo a alcançar logo a outra margem, mas pelo contrário, fica pisando e repisando sobre a linguagem-ponte, fazendo-a balançar.

E o que a literatura nos dá, em primeiríssimo lugar? Profundidade, experiência vertical da vida. Nos dá notícia de que somos muito mais do que sabemos ser, porque somos capazes de entender dramas, tragédias, comédias, percursos os mais variados, isso tudo sem viver diretamente nenhuma das histórias lidas. Aliás, Gottschall nos diz que o provável motivo de ter havido este processo adaptativo foi a vantagem de experimentar situações fortes (participar de uma guerra, conquistar a mulher de um homem poderoso etc.), sem precisar vivê-las diretamente.

2. AGILIDADE. Quem lê tem agilidade mental; quem lê literatura tem ainda mais presteza, velocidade, capacidade de estabelecer relações de todo tipo. Aí está um valor indiscutível da leitura e da literatura. A prova desse ganho pode ser feita em negativo: converse com quem não lê e confira. Bem, há exceções; há pessoas interessantíssimas que não leram, talvez nem soubessem ler, ou mal e mal dominassem a técnica básica. Mas no mundo de hoje essas figuras são cada vez mais raras.

E se for o caso de estabelecer uma regra geral, é certo que a regra desejável será a de ensinar a ler e a escrever, como caminho mínimo para o acesso ao aprendizado, à novidade. Ensinar a ler todo tipo de texto, do mais singelo como uma notícia ao mais complexo como um poema, passando pela bula de remédio, pelo panfleto político, por qualquer modalidade de texto. De todos os ambientes letrados possíveis, porém, o mais relevante é o da literatura, porque ele concentra as várias modalidades de uso da linguagem utilizadas intensamente e carrega a vantagem da longa tradição, que permite ao leitor exercitar uma verdadeira aeróbica mental. Enfim, mas não por último, a leitura tona-nos mais hábeis no manejo da língua, que medeia todas as relações sociais, afetivas e políticas.

3. VARIEDADE. A literatura tem o extraordinário mérito de acolher qualquer experiência humana, em qualquer parte, época e situação. Faça o teste: na literatura, não há o que não haja. Vidas de santos e canalhas, nobres e plebeus, reacionários e revolucionários, remediados e sem-remédio, ricos e pobres, todas cabem na literatura.

A melhor literatura brasileira foi concebida na luta contra a trivialidade, a indiferença, a exclusão. Pense Simões Lopes Neto, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa botando o “sertão” nas primeiras filas da qualidade. Ou Vieira e Machado, escritores classicizantes. A crônica, que não respeita limites; a canção, forma semiliterária (e semimusical) que não tem como ser mais acolhedora das variedades dialetais.

Quer dizer: já foi cumprido na literatura aquele ideal que os sociolinguistas postulam para o ensino de língua, de que a escola acolha todas as variedades dialetais da vida diária, sem exclusão, como forma de acolher os falantes delas, muitas vezes gente que não conheceu jamais formação letrada. Se os alunos forem expostos a ela, terão como se encontrar e poderão então ver que maravilhas os grandes artistas já fizeram com este patrimônio compartilhado por todos, a língua portuguesa.

4. CONCENTRAÇÃO. A leitura de textos de qualidade impõe exigências, e uma delas é a concentração. Não basta sentar por poucos minutos para vencer o desafio de um texto profundo, e isso costuma ser obstáculo duro para os leitores inexperientes. Essa característica se salienta mais ainda em nossos tempos, tão pródigos em diversões com satisfação imediata.

Mas ocorre que essa imediatez é diretamente proporcional à profundidade: quanto mais rápida a satisfação, mais raso é o prazer estético e o proveito intelectual. O romance exige muito tempo de leitura, mas a intensidade da satisfação nem se compara. O preço para ler bem é a concentração, poderíamos dizer “o foco”, como está na moda. E é bem isso: quem lê boa literatura aprende a ter foco, aprendizado que pode ser repassado para as outras áreas da vida, com ganhos objetivos, da preparação para uma prova à dedicação a objetivos de longo prazo na vida.

5. IMAGINAÇÃO. Um dos dois valores mais importantes para a leitura é a imaginação. Ocorre sempre essa verdade geral aos que fazem comparação entre um romance lido e a adaptação desse romance para o cinema ou a tevê: a transposição para meios audiovisuais costuma decepcionar os leitores do livro original porque na leitura o poder daquela história foi muito superior, devido exatamente ao fato de que a leitura exige imaginação.

Nada contra as adaptações, em todos os sentidos e para todas as linguagens: elas são uma porta de acesso que deve ser incentivada. Mas o caso é que o original faz nossa mente funcionar com mais vigor: ali onde o escritor sugere um castelo ou uma praça, nossa imaginação entra em funcionamento para realizar tais lugares, ao passo que no audiovisual nós já vemos o castelo e a praça que o diretor imaginou, restando pendurar a nossa leitura na dele, o que é sempre menos do que poderia ser.

E qual o valor da imaginação? Incalculável, sem dúvida. Imaginamos novas formas de organização social, tanto quanto novos usos e tecnologias, para nem dizer as novas formas de sermos nós mesmos.

6. LIBERDADE. Talvez o mais potente valor da literatura seja o de proporcionar o exercício da liberdade. Quem lê passeia por rotas desconhecidas que no entanto estão dentro de cada um, bastando ativá-las. São incontáveis os exemplos de leitura proveitosa feita em condições precárias, até mesmo quando faltam as liberdades elementares.

Com crianças, nem se fala: compare o antes e o depois dos livros. Pergunta Michèle Petit: as crianças se exprimem mais do que antes, ou não? Estão mais à vontade para falar delas mesmas? A relação delas com os outros se transforma? Parece haver pouca dúvida das respostas.

Se entendermos liberdade como a infindável conquista da autonomia, então a leitura de literatura pode ser qualificada como o caminho talvez mais significativo que a família, a escola, as instituições públicas de cultura devem proporcionar.

QUATRO LEITURAS SOBRE LEITURA

Lições dos Mestres, de George Steiner. Rio de Janeiro: Record, 2005.

 A Arte de Ler, ou Como Resistir à Adversidade, de Michèle Petit. São Paulo: Ed. 34, 2009.

A Espécie Fabuladora – Um Breve Estudo sobre a Humanidade, de Nancy Huston. Porto Alegre: L&PM, 2010.

Voltar a Ler – Propostas para Ser uma Nação de Leitores, de Mempo Giardinelli. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 2010.

Nenhum comentário: