RUTH
DE AQUINO
O cinismo de Ronaldinho Gaúcho
Não
sei se foi a perda precoce do pai, afogado na piscina de casa quando o garoto
Ronaldinho driblava as cadeiras e tinha 8 anos. Não sei se foi a influência
calculista do irmão Assis, dez anos mais velho, que se tornou seu empresário e
o verdadeiro dono de seu passe. Mas o grande Ronaldinho Gaúcho se apequena
quando fala sobre suas trapalhadas. Sempre foi assim. Ele não vai mudar. “O
Flamengo faz parte do passado”, diz o atacante que já encantou o Brasil e o
mundo.
Para
quem critica a entrevista que ele deu ao Fantástico depois de rescindir o
contrato com o clube, é bom saber que Ronaldinho Gaúcho apenas repetiu sua
performance. O rapaz é um santo. Nunca houve problemas no Flamengo com
treinadores, colegas. Nunca faltou a seus compromissos. Nunca dormiu mais que
os outros. Nunca bebeu na véspera de um jogo ou comemorou com festança uma
derrota. Nunca levou mulher para a concentração. Sempre deu seu melhor. Ele
teria sido mais honesto se tivesse feito como o bicheiro lobista Cachoeira e o
senador Demóstenes Torres: “Nada a declarar”.
Conversei
com Ronaldinho em sua casa no subúrbio de Paris, em 2002. Ele estreava na
Europa pelo PSG (Paris Saint-Germain). Tinha deixado em Porto Alegre uma
torcida enfurecida com ele, a do Grêmio. Na entrevista, disse que seria
gremista “para o resto da vida”. Seus únicos problemas tinham sido “as mentiras
da direção do clube”.
Falava
como autômato. “Nunca tive problemas fora de campo. Nunca fui vaiado em boate.”
Os gremistas criaram um site chamado “Dentuço Pilantra”. Sobre o técnico
Vanderlei Luxemburgo, que não o escalara para um jogo alegando que estava
gordo, afirmou: “Grande treinador. Tenho uma amizade grande por ele”.
O
camisa 10 tinha 22 anos, começava a deixar o cabelo comprido e já não assumia
vontades ou desafetos. Não olhava no olho, mas para baixo. Parecia um autista. Quando
perguntei quanto ganhava no PSG, respondeu sem piscar: “Mamãe é que sabe. Não
me preocupo com dinheiro”. Pensei: é muita cara de pau. Talvez fosse o sucesso
meteórico na tenra idade. Muito dinheiro, endeusado antes do tempo. Tem atleta
que lida bem com isso. Outros não.
Ele
teria sido mais honesto se tivesse feito como Cachoeira ou Demóstenes e dito: “Nada
a declarar”
Não
sou flamenguista, mas entendo como a torcida se sente. O cara parou o Rio em
janeiro do ano passado. Vinte mil torcedores se espremeram em ônibus, trens e
metrôs para saudá-lo na Gávea. Ele proclamou: “Tô realizado. Vivendo um sonho”.
No Carnaval, deu seu único espetáculo.
Agora,
o Flamengo – depois de se omitir passando a mão na juba do ex-craque, ignorando
a indisciplina extracampo e a preguiça em campo – quer proibi-lo de jogar em
outro clube. E briga na Justiça para não pagar os R$ 40 milhões devidos até o
fim do contrato, em dezembro de 2014 (eu também brigaria). Os atrasados se
referem especialmente a direitos de imagem. Qual é mesmo a imagem que
Ronaldinho Gaúcho reforçou no Flamengo? A de baladeiro feliz e craque decadente.
O
clube com mania de megalomania (“o maior do mundo”) prepara um dossiê e quer
exibir tudo o que já tinha mas abafava. Vídeo da noite do jogador com uma
mulher no hotel em Londrina, na concentração em janeiro (ooohhh...). Exame de
sangue com álcool. Depoimentos de colegas e de Luxemburgo desmascarando a
cantilena de bonzinho injustiçado. É uma baixaria só.
Ronaldinho
saiu do Flamengo porque nunca entrou. Mesmo indisciplinado, se tivesse decidido
as partidas, o clima não azedaria assim. Demitiu um técnico, passou a ser
vaiado, deixou de ser atraente para patrocinadores. O clube fingia que pagava,
ele fingia que jogava. E o torcedor se sentia vítima de bullying duplo: do
Flamengo e de Ronaldinho.
O
irmão Assis deu uma de esperto. Roubou camisas do R10 da loja do Flamengo, na Gávea,
antecipando-se à revolta da torcida. Agora, rubro-negros colam esparadrapo em
cima do nome do ex-ídolo. Há um vídeo na blogosfera ensinando a descolar da
camisa as letras do nome de Ronaldinho, com ajuda de álcool.
O
autor sugere que os torcedores usem cachaça. “Para os milhares de brasileiros
que, como eu, tinham vergonha de envergar o manto sagrado por estar com o nome
de Ronaldinho abaixo do 10 que um dia foi de Zico, de Pet e mesmo de Adriano”,
diz o torcedor.
Ronaldinho,
não deve ser bom deixar ódio para trás. Você saiu por onde não queria sair. Pela
porta dos fundos. Esses 505 dias na Gávea podem já fazer parte do passado para
você, que agora beija a camisa do Atlético-MG. Mas nosso passado nos condena ou
nos redime.
Não é
preciso ser jogador de futebol para saber que problemas dentro e fora de campo
transformam um ídolo em vilão. Um médico estrela, um executivo estrela, um político
estrela, um jornalista estrela. Quanto mais competente, mais visado é. Não dá para
atrasar, dormir no ponto, beber demais, causar problemas na equipe, violar
regras de conduta, não brilhar no expediente. E achar que só os outros têm
culpa.
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