sábado, 9 de junho de 2012


RUTH DE AQUINO

O cinismo de Ronaldinho Gaúcho

Não sei se foi a perda precoce do pai, afogado na piscina de casa quando o garoto Ronaldinho driblava as cadeiras e tinha 8 anos. Não sei se foi a influência calculista do irmão Assis, dez anos mais velho, que se tornou seu empresário e o verdadeiro dono de seu passe. Mas o grande Ronaldinho Gaúcho se apequena quando fala sobre suas trapalhadas. Sempre foi assim. Ele não vai mudar. “O Flamengo faz parte do passado”, diz o atacante que já encantou o Brasil e o mundo.

Para quem critica a entrevista que ele deu ao Fantástico depois de rescindir o contrato com o clube, é bom saber que Ronaldinho Gaúcho apenas repetiu sua performance. O rapaz é um santo. Nunca houve problemas no Flamengo com treinadores, colegas. Nunca faltou a seus compromissos. Nunca dormiu mais que os outros. Nunca bebeu na véspera de um jogo ou comemorou com festança uma derrota. Nunca levou mulher para a concentração. Sempre deu seu melhor. Ele teria sido mais honesto se tivesse feito como o bicheiro lobista Cachoeira e o senador Demóstenes Torres: “Nada a declarar”.

Conversei com Ronaldinho em sua casa no subúrbio de Paris, em 2002. Ele estreava na Europa pelo PSG (Paris Saint-Germain). Tinha deixado em Porto Alegre uma torcida enfurecida com ele, a do Grêmio. Na entrevista, disse que seria gremista “para o resto da vida”. Seus únicos problemas tinham sido “as mentiras da direção do clube”.

Falava como autômato. “Nunca tive problemas fora de campo. Nunca fui vaiado em boate.” Os gremistas criaram um site chamado “Dentuço Pilantra”. Sobre o técnico Vanderlei Luxemburgo, que não o escalara para um jogo alegando que estava gordo, afirmou: “Grande treinador. Tenho uma amizade grande por ele”.

O camisa 10 tinha 22 anos, começava a deixar o cabelo comprido e já não assumia vontades ou desafetos. Não olhava no olho, mas para baixo. Parecia um autista. Quando perguntei quanto ganhava no PSG, respondeu sem piscar: “Mamãe é que sabe. Não me preocupo com dinheiro”. Pensei: é muita cara de pau. Talvez fosse o sucesso meteórico na tenra idade. Muito dinheiro, endeusado antes do tempo. Tem atleta que lida bem com isso. Outros não.

Ele teria sido mais honesto se tivesse feito como Cachoeira ou Demóstenes e dito: “Nada a declarar”

Não sou flamenguista, mas entendo como a torcida se sente. O cara parou o Rio em janeiro do ano passado. Vinte mil torcedores se espremeram em ônibus, trens e metrôs para saudá-lo na Gávea. Ele proclamou: “Tô realizado. Vivendo um sonho”. No Carnaval, deu seu único espetáculo.

Agora, o Flamengo – depois de se omitir passando a mão na juba do ex-craque, ignorando a indisciplina extracampo e a preguiça em campo – quer proibi-lo de jogar em outro clube. E briga na Justiça para não pagar os R$ 40 milhões devidos até o fim do contrato, em dezembro de 2014 (eu também brigaria). Os atrasados se referem especialmente a direitos de imagem. Qual é mesmo a imagem que Ronaldinho Gaúcho reforçou no Flamengo? A de baladeiro feliz e craque decadente.

O clube com mania de megalomania (“o maior do mundo”) prepara um dossiê e quer exibir tudo o que já tinha mas abafava. Vídeo da noite do jogador com uma mulher no hotel em Londrina, na concentração em janeiro (ooohhh...). Exame de sangue com álcool. Depoimentos de colegas e de Luxemburgo desmascarando a cantilena de bonzinho injustiçado. É uma baixaria só.

Ronaldinho saiu do Flamengo porque nunca entrou. Mesmo indisciplinado, se tivesse decidido as partidas, o clima não azedaria assim. Demitiu um técnico, passou a ser vaiado, deixou de ser atraente para patrocinadores. O clube fingia que pagava, ele fingia que jogava. E o torcedor se sentia vítima de bullying duplo: do Flamengo e de Ronaldinho.

O irmão Assis deu uma de esperto. Roubou camisas do R10 da loja do Flamengo, na Gávea, antecipando-se à revolta da torcida. Agora, rubro-negros colam esparadrapo em cima do nome do ex-ídolo. Há um vídeo na blogosfera ensinando a descolar da camisa as letras do nome de Ronaldinho, com ajuda de álcool.

O autor sugere que os torcedores usem cachaça. “Para os milhares de brasileiros que, como eu, tinham vergonha de envergar o manto sagrado por estar com o nome de Ronaldinho abaixo do 10 que um dia foi de Zico, de Pet e mesmo de Adriano”, diz o torcedor.

Ronaldinho, não deve ser bom deixar ódio para trás. Você saiu por onde não queria sair. Pela porta dos fundos. Esses 505 dias na Gávea podem já fazer parte do passado para você, que agora beija a camisa do Atlético-MG. Mas nosso passado nos condena ou nos redime.

Não é preciso ser jogador de futebol para saber que problemas dentro e fora de campo transformam um ídolo em vilão. Um médico estrela, um executivo estrela, um político estrela, um jornalista estrela. Quanto mais competente, mais visado é. Não dá para atrasar, dormir no ponto, beber demais, causar problemas na equipe, violar regras de conduta, não brilhar no expediente. E achar que só os outros têm culpa.

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