segunda-feira, 18 de junho de 2012



18 de junho de 2012 | N° 17104
LUIZ ANTONIO DE ASSIS BRASIL

África, africanos

“A primeira impressão cola-se para sempre à pele. Chegas à porta do avião e há um bafo que te envolve e retém no cimo das escadas. Digamos isto de outra maneira: há um bafo espesso que te empurra para trás, como onda lenta que desabasse sobre ti. Ainda não leste Karen Blixen, mas por aí mesmo ficas a saber que em África há odores tão intensos que quase nos sufocam.”

A forte abertura de um texto de Urbano Bettencourt, incluído no livro África de Frente e Verso (2012), diz, em caráter físico e simbólico, o que representa o primeiro contato africano para o europeu.

Esse é um livro escrito por quem viveu a África da pior maneira, isto é, como civil improvisado em militar, obrigado a combater na guerra insana mantida pelo regime salazarista; mas esse homem tem o privilégio de retornar à África, já como intelectual, já como escritor – como alguém, portanto, que pode refletir sobre o continente de então, mas, e principalmente, sobre o continente de hoje. Ir para a África, e ir para lutar, é uma experiência de muitos portugueses; mas poucos são os que se detiveram a refletir sobre o que lhes aconteceu.

Eis aí uma experiência que não aconteceu concretamente aos brasileiros. Não tivemos um Salazar (tivemos piores) e não tivemos uma guerra colonial (tivemos tortura e morte).

Mas a África, para nós, também significa uma guerra, aquela travada entre nossa consciência de hoje e a barbárie cometida no passado. Nossa luta é para, em primeiro lugar, reconhecer a escravidão e, em segundo, compensá-la de alguma forma.

Não basta o compadecimento: é preciso fazer algo efetivo para amenizar a vida de milhões de brasileiros que concorrem em condições de desigualdade perante seus iguais. As cotas raciais podem ser um remédio, ainda que transitório.

Urbano Bettencourt pode escrever no poema Resistência: “a noite / o rebentar das bombas o ranger / dos dentes / tudo tanto ou tão nada / como este lago de sangue / nascido nas pernas da mulher / violada pela milésima vez / e sempre virgem / teimosamente virgem”. Fala ele da mulher africana que ele viu; nós falamos de mulheres e homens africanos que não vimos, mas que clamam do passado por justiça.

É agora, é nossa geração que deve fazer essa justiça. Todos nós, brancos, pardos, negros, todos devemos reparar essa violação ancestral que nos constrange e envergonha.

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