23
de junho de 2012 | N° 17109
CLÁUDIA
LAITANO
Gabrielas e Malvinas
A
primeira Gabriela da televisão tinha a pele bem branquinha, olhos claros e
coxas de vedete do teatro rebolado (não por acaso, a ocupação principal da moça
no momento em que foi escalada para o papel). Janete Vollu foi a estrela da
primeira adaptação do romance de Jorge Amado – exibida pela TV Tupi em 1961, no
auge do sucesso do livro, best-seller instantâneo em um Brasil ainda maciçamente
analfabeto.
No
comecinho dos anos 60, a incipiente televisão brasileira ainda não estava
preparada para uma Gabriela mestiça e sexualmente livre como a que é descrita
no livro. Se a imagem de uma protagonista morena, quase mulata, não parecia
apropriada para os padrões estéticos vigentes, muito menos a sensualidade
exuberante da personagem podia ser apresentada ao público da época sem ser
atenuada pelo filtro do julgamento moral.
Foi
preciso acontecer Maio de 68, Woodstock e o Tropicalismo para que a personagem
encontrasse a sua mais completa tradução. Em 1975, a Gabriela que varreu do
mapa a memória de Janete Vollu (e complicou a vida das futuras candidatas ao
papel) fez sua estreia na TV brasileira com toda a força de uma história que
tinha finalmente encontrado o ambiente ideal para ser contada.
A
trama se passa nos anos 20, o livro é do final dos anos 50, mas só nos anos 70
Gabriela pôde ser retratada não como a mulher amoral (e branquela) da primeira
versão da TV, mas como a mestiça brejeira que gostava de sexo e da liberdade de
poder escolher com quem se deitava.
O
romance, aliás, é povoado por mulheres que buscam, de alguma forma, romper com
o que é esperado delas. Gabriela não quer ser transformada em uma senhora bem-comportada
que usa chapéu e sapatos apertados.
Malvina,
a segunda grande personagem feminina do livro, exige o direito de ter opinião e
dirigir a própria vida. A beata Sinhazinha, que trai o marido, dá-se o direito
de ter prazer – e acaba tendo o mesmo final trágico ainda tristemente banal no
Brasil de hoje. Já às meninas do Bataclan cabe escancarar a hipocrisia e a
moral literalmente de cuecas do arranjo patriarcal.
E o
que se poderia dizer sobre a Gabriela de 2012? Antes de mais nada, que é uma
mulher do seu tempo e não apenas da época em que se passa o romance – como, em
geral, todas as personagens literárias levadas ao cinema ou à televisão. Se a
Gabriela de Sonia Braga exibia sem pudor uma vasta cabeleira sob as mimosas
axilas, a Gabriela de Juliana Paes é depilada a laser, bronzeada a jato e sorri
com dentes quimicamente branqueados. Onde Sonia Braga insinuava, Juliana Paes
mostra e faz.
O
fato é que cada época tem a Gabriela que melhor a representa – assim como cada
geração engendra novas causas para suas “Malvinas”. Se Jorge Amado ainda
estivesse vivo, é provável que o velho comunista colocasse de lado as broncas
com o grande império do Norte para elogiar o discurso da secretária de Estado
americana Hillary Clinton no encerramento da Rio+20: “Devemos dar às mulheres o
direito de tomar decisões sobre se e quando querem ter filhos”.
Essa
história ainda está por ser escrita – por Gabrielas, Malvinas e quem mais vier.
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