domingo, 10 de junho de 2012


HÉLIO SCHWARTSMAN

A força do hábito

Por que é tão difícil se livrar de costumes e dependências

RESUMO

Quase metade das ações que executamos diariamente não são produto de decisões deliberadas, mas do hábito. Livros recentes mostram como rotinas se tornam vícios, como empresas se aproveitam dos costumes dos clientes para aumentar vendas e como mudanças de hábitos podem reduzir mortes em hospitais.

Qualquer comportamento humano é o resultado da interação de uma série de variáveis, que incluem desde inflexíveis características genéticas até detalhes exoticamente mundanos, como a temperatura em que foi deixado o ar condicionado, passando pelo mais puro acaso. Se há uma força que se destaca nessa multidão de impulsos e disposições, é o hábito.

Pesquisadores da Universidade Duke estimaram, num trabalho de 2006, que mais de 40% das ações que executamos diariamente não são produto de decisões deliberadas, mas do hábito. Seria difícil superestimar sua importância.

Hábitos nos permitem executar uma miríade de atividades intimamente associadas a nosso bem-estar e são uma das principais forças a movimentar a economia mundial. A capacidade de modificá-los está intimamente associada ao sucesso de pessoas e empresas.

Do lado negativo, hábitos estão ligados à dependência de drogas e a outros comportamentos destrutivos e são o ponto a partir do qual políticos, publicitários e outros segmentos da mídia tentam (e muitas vezes conseguem) influir em nossas decisões e manipular-nos o comportamento.

O hábito é basicamente uma rotina neurológica pela qual executamos uma tarefa de modo mais ou menos automático, como escovar os dentes, dirigir pelo trajeto de sempre, acender um cigarro após as refeições ou, no caso de uma tartaruga marinha, voltar sempre à mesma praia em que nasceu para depositar seus ovos.

Trata-se de uma ferramenta de aprendizado, a forma favorita da natureza de fixar comportamentos úteis para a sobrevivência. É pelo hábito que a maior parte dos vertebrados navega pelo mundo.

Nós, humanos, ao lado de alguns outros mamíferos, somos um pouco diferentes. Temos uma certa flexibilidade e, por isso, não nos fiamos inteiramente no hábito.

O problema é que o comportamento flexível demanda enormes recursos atencionais e, portanto, energéticos (o sistema nervoso central consome sozinho cerca de 25% do oxigênio que respiramos).

Sempre que pode, o cérebro tenta converter atividades rotineiras em hábitos e, com isso, poupar energia e liberar espaço para outras tarefas.

VÍCIO

Em termos neurológicos, os gânglios basais parecem ser o lugar onde armazenamos nossos hábitos. Essas estruturas primitivas também já foram associadas ao controle de sistemas motores (elas têm um papel importante na doença de Parkinson) e aos centros de recompensa, envolvidos no aprendizado e no vício em drogas.

Um pouco desprezado pelos cientistas, que o viam como algo repetitivo e aborrecido e que evocava os piores momentos do behaviorismo, o hábito está dando sua volta por cima. Nos últimos anos, vários livros detalharam seus mecanismos de funcionamento e destrincharam suas implicações.

Um recente é  "The Power of Habit: Why We Do What We Do in Life and Business" [Random House, 400 págs., R$ 79] , de Charles Duhigg. O autor não é cientista nem divulgador de ciência. É repórter de negócios do "New York Times" e começou a se interessar pela força do hábito para modificar comportamentos quando cobria a guerra no Iraque.

No início da ocupação, o país era castigado por episódios quase diários de manifestações violentas. Mas havia uma notável exceção. A pequena cidade de Kufa despontava como ilha de tranquilidade. O responsável pela façanha era um major do Exército dos EUA, que, após analisar vídeos de protestos que descambavam para a violência, resolveu fazer um experimento. Mandou retirar todos os vendedores de comida da praça de Kufa. Deu certo.

O major identificara um padrão, um hábito organizacional. Os manifestantes se juntavam na praça aos poucos e iam atraindo a atenção de passantes, que paravam para observar, engrossando a multidão. Então apareciam os vendedores de comida. Alguém gritava um slogan antiamericano, jogava uma pedra ou uma garrafa e o pandemônio começava.

Sem os vendedores de comida, que haviam se tornado um dos gatilhos da rotina de violência, o ciclo não se completava. Os passantes, com fome e sem ter como saciá-la, preferiam ir para casa, desmobilizando os manifestantes.

"The Power of Habit" é um livro gostoso de ler. Duhigg escreve bem e recheia a narrativa com casos humanos e boas histórias sobre empresas, algumas com potencial para nos deixar preocupados, como veremos adiante. Poderia ter sido um pouco mais meticuloso ao descrever a ciência do hábito, mas a verdade é que a neurofisiologia é uma disciplina que não costuma atrair multidões de fãs.

Na versão simplificada, hábitos se materializam como um circuito de três fases. Eles são desencadeados por uma sugestão que funciona como gatilho, disparando a rotina gravada nos gânglios basais. Essas rotinas podem ser tanto físicas (meter os dentes numa barra de chocolate) como mentais (lembrar a infância sempre que se come um biscoito).

Em seguida vem a recompensa, que costuma ser uma boa descarga de dopamina, conhecida jornalisticamente como molécula do prazer. Trata-se de um mecanismo de "feedback" positivo.

Isso significa que, quanto mais o usamos, mais ele se solidifica em nossas mentes. Daí a dificuldade em abandonar velhas práticas, notadamente as que nos fazem mal. Esse mecanismo se manifesta na forma de "craving" (fissura), que é o desejo incontido de executar a rotina despertado pelo gatilho.

Outra implicação é que nunca nos livramos de verdade nossos hábitos, mesmo quando nos esforçamos para mudá-los. A rotina antiga é alterada, mas fica armazenada em algum recôndito de nossas mentes. O bom é que não precisamos reaprender a dirigir sempre que voltamos de férias. O ruim é que, sob estresse, alcoólatras e outras vítimas de dependência podem recair nos velhos padrões.

EMPRESAS

Hábitos não estão limitados a pessoas. Eles também estão presentes na vida de empresas e organizações. Pior ainda, empresas e organizações tentam explorar os hábitos de pessoas, mais especificamente de consumidores, para aumentar seu faturamento.

Um exemplo é o do McDonald's. As lojas seguem uma planta standard e tentam ser o mais parecidas possível, inclusive nas fórmulas de tratamento usadas pelos funcionários. A ideia é que tudo sirva como gatilho para disparar as rotinas de alimentação dos clientes. Eles se sentirão reconfortados e recompensados. E quanto mais forem ao McDonald's, mais quererão voltar.

Um caso assustador narrado por Duhigg é o da rede Target. Grávidas são uma mina de ouro para o comércio, não só porque gastam muito nos enxovais, mas, principalmente, porque esse é um momento em que elas (e os maridos) são particularmente vulneráveis a alterar hábitos de consumo, potencialmente para o resto da vida.

Diante disso, a Target, que vende um pouco de tudo, de móveis e eletrodomésticos a comida, a preços atrativos, resolveu que precisava descobrir quais clientes estavam começando uma gravidez para ganhá-las para todo o sempre.

Para isso contratou o economista comportamental Andrew Pole, que desenvolveu um algoritmo matemático para, com base em alterações bruscas nos itens comprados -coisas como vitaminas, loções, bolsas grandes-, identificar quais estavam grávidas. Aí era só enviar-lhes os cupons certos, com descontos para lindos berços e estoques de fraldas, e fisgá-las.

É claro que nada pode ser tão explícito. Muitos ficariam irritados se descobrissem que seu supermercado xereta o que compram para ampliar vendas. Assim, a Target não poderia só enviar cupons de produtos relacionados a bebês para as grávidas. A solução, genial, foi mandar essa publicidade específica misturada à de outros itens, fazendo parecer que tudo não passou de feliz coincidência.

A moral da história, que dá razão aos paranoicos, é que é preciso ter cuidado ao passar o cartão de fidelidade no caixa. Sua loja favorita pode estar descobrindo seus segredos mais íntimos.

LESÕES

Esses exemplos mundanos podem dar a impressão de que o hábito ocupa um lugar marginal em nossas vidas mentais, mas seu papel é absolutamente central.

Pessoas com lesões nos gânglios basais perdem a capacidade até de decidir o que vão comer ou de abrir uma porta. Sem os atalhos proporcionados pelo hábito, ficam mentalmente paralisadas, impossibilitadas de ignorar os detalhes insignificantes que continuamente inundam nossas cabeças.

Para Duhigg, o segredo para mudar os hábitos é manter o gatilho e a recompensa antigos, mas alterar a rotina. Parece banal e de fato é. O detalhe é que as pessoas nem sempre estão cientes de quais gatilhos disparam seus costumes.

O que programas como o Alcoólicos Anônimos (AA) fazem é oferecer condições para que a pessoa perceba que situações acionam a "fissura" que a leva a beber e substitua a rotina por outras que também produzam satisfação. A visita ao bar é trocada por uma reunião ou conversa com o padrinho.

O autor sustenta que, em princípio, por esse esquema de reconhecimento e substituição, qualquer hábito pode ser modificado. Aqui está o ponto mais fraco do livro de Duhigg. É claro que, em princípio, toda rotina automática pode ser alterada.

Pessoas se curam até da dependência de heroína. Mas, quando vemos as legiões de fumantes incapazes de largar o vício e exércitos de obesos que não conseguem perder peso, vemos que fazê-lo tende a ser mais complicado do que sugere a teoria.

Ao não valorizar devidamente as dificuldades, que são epidemiologicamente aferíveis, Duhigg, se não chega ele próprio a resvalar na literatura de autoajuda, abre uma avenida para seus promotores.

Cuidado, não estou afirmando que todos os títulos de autoajuda são lixo. Muitos de fato o são, mas nem todos. Uma honrosa exceção é  "Switch: How to Change Things When Change Is Hard" [Crown Business. 320 págs. R$ 33 mais taxas] , dos irmãos Chip e Dan Heath, com várias publicações na área de negócios.

Embora "Switch" busque auxiliar o leitor a desenvolver estratégias para alterar seus hábitos e os das organizações de que faça parte, está calcado em boa ciência. Enquanto Duhigg caminha pelas sendas da neurociência, os irmãos Heath apostam na psicologia. Para eles, a dificuldade para alterar uma rotina decorre do fato de que nossas mentes são o campo de batalha onde razão e emoção se enfrentam pela supremacia sobre nossas ações. Enquanto o cérebro racional deseja uma silhueta esbelta, o emocional está mais interessado em repetir a sobremesa.

De modo geral, a razão gosta de mudança, enquanto a emoção prefere o conforto da rotina conhecida. Embora costumemos pensar em nós mesmos como seres racionais e ponderados, um enorme corpo de experimentos psicológicos esboça quadro mais complexo.

ELEFANTE

Emoções, para utilizar a imagem do psicólogo Jonathan Haidt, são um elefante; a razão, o condutor desse elefante. O animal obedecerá ao piloto, mas apenas enquanto estiver disposto a fazê-lo. Quando os dois estão de acordo, tudo transcorre bem, mas, quando divergem, o elefante tende a levar a melhor. Ele, afinal, é o mais forte e o mais resistente. Há outras circunstâncias, mais raras, em que o condutor convence o bicho a mudar de ideia. É aí que se inscrevem as mudanças de hábito.

Embora a prosa dos Heath não seja saborosa como a de Duhigg, eles também recorrem a casos interessantes, como o de Donald Berwick, médico e CEO do Institute for Healthcare Improvement.

Berwick queria reduzir o número de mortes por erros de procedimento em hospitais dos EUA. A taxa de "defeito", isto é, de erros como não ministrar a droga certa na quantidade e na hora especificadas, era de absurdos 10% no início dos anos 2000. Na maioria das indústrias, esse índice é inferior a 0,1%. Isso significava que dezenas de milhares morriam desnecessariamente a cada ano.

Nada disso era novidade. Os números eram conhecidos e todos sabiam mais ou menos o que deveria ser feito, mas as mudanças simplesmente não aconteciam. Foi aí que, em 14 de dezembro de 2004, numa convenção de administradores hospitalares, Berwick lançou o desafio. Propôs que, até as 9h de 14 de junho de 2006, ou seja, dali a 18 meses, as pessoas naquela sala salvassem 100 mil vidas.

A plateia ficou chocada, mas Berwick sugeriu que todos ali se comprometessem a implementar seis medidas específicas capazes de produzir enorme retorno. Algumas eram simples, como garantir que a cabeceira da cama de todos os pacientes estivesse com inclinação entre 30° e 45°, modo eficaz de prevenir pneumonia, complicação comum e frequentemente fatal.

Eles concordaram, mas não foi fácil. Aceitar as medidas implicava reconhecer que os hospitais tinham taxa elevada de erros e que produziam mortes desnecessárias, um pesadelo para os departamentos jurídicos. Mas a coisa ganhou força e, dois meses depois do discurso, mil hospitais haviam formalizado adesão à campanha.

Em 14 de junho de 2006, Berwick anunciava que os hospitais participantes da campanha das 100 mil vidas tinham evitado coletivamente 122.300 mortes, segundo cálculos dos epidemiologistas. Mais importante, a maior parte das seis medidas propostas havia sido institucionalizada. Os hospitais dos EUA se tornaram lugares um pouco menos perigosos.

Para os irmãos Heath, a receita da mudança de hábito tem três partes. Primeiro, dirija-se ao condutor do elefante. Muitas vezes, o que parece resistência é apenas falta de clareza. No caso de Berwick, as instruções ao piloto vieram na forma das seis intervenções.

Motive o elefante. O que parece preguiça pode ser só exaustão. O condutor não consegue opor-se ao animal por muito tempo, assim, é preciso colocar o lado emocional para trabalhar a favor da mudança. No exemplo, a motivação é salvar 100 mil vidas em 18 meses.

Modele o caminho. O que parece falha de caráter é às vezes só problema situacional, quando você altera um bocadinho as coisas para que a mudança pareça mais factível, ela se torna mais provável. Berwick modelou o caminho ao criar um sistema simples de adesão que logo se tornou corrente.

TRÁGICO

David DiSalvo, autor de  "What Makes Your Brain Happy and Why You Should Do the Opposite" [Prometheus, 280 págs., R$ 43] , tem visão mais trágica. Para ele, o cérebro evoluiu para tornar-se uma máquina de fazer previsões. Para tanto, especializou-se em identificar padrões, antecipar ameaças e forjar narrativas. Ele ama a estabilidade e tem horror à incerteza e à imprevisibilidade, ameaças existenciais.

O problema é que, ao desenvolver a capacidade de se defender dessas supostas ameaças, nossos cérebros deixaram para trás subprodutos que jamais conseguiremos desentranhar de nossas atitudes e nossos pensamentos. Exemplos dessas inclinações incluem nossa obsessão por certezas, a confiança excessiva na memória, a disposição para achar que tudo tem um significado especial, a vontade de estar no controle etc.

Embora esses vieses deixem nossos cérebros felizes, isso nem sempre serve a nossos interesses no mundo moderno. Lembre que nossas mentes foram criadas para operar no paleolítico, não em sociedades tecnológicas e plurais.

Sintomaticamente, o livro de DiSalvo é o que reúne menos exemplos. É também o que traça panorama mais completo dos recentes achados científicos sobre aspectos salientes da natureza humana. O hábito é um dos personagens, mas, como estamos num romance sem protagonistas, não faz tantas aparições quanto nos outros livros.

Para o autor, os últimos achados da neurociência e da psicologia cognitiva desferem um golpe na literatura de autoajuda, ao mostrar como a maioria dos conselhos são vazios e até fraudulentos. O caminho, diz DiSalvo, é usar a ciência para entender por que nossos cérebros encerram vieses que nos colocam em encrencas e por que temos dificuldade em sair delas.

Curiosamente, DiSalvo finaliza o livro com 50 pérolas de sabedoria extraídas de um corpo que parece consistente de evidências científicas. São conselhos como "cuidado com nossos vieses", "termine o que começou", "crie hábitos úteis" etc. -um fecho paradoxal para um autor tão crítico à autoajuda.

Uma explicação possível é que, entre os pendores inextinguíveis do gênero humano, estão o medo da incerteza com o futuro e a necessidade de estar no controle, que, juntos, asseguram que, enquanto os humanos forem humanos, haverá interesse pela autoajuda. As melhores evidências disponíveis provam que esse é um hábito que não conseguiremos mudar nem com o auxílio de muita ciência.

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