O Brasil e o mundo têm muito
mais pobres do que afirmam os governos
E
você, é da classe média?
RAFAEL CISCATI E MARCOS CORONATO
01/08/2013
08h00
SOMOS
POBRES Favela de Paraíso, em São Paulo. Se a referência for a classe C, dois
terços dos moradores de favelas são de classe média (Foto: Raimundo Pacco/Folhapress)
Favela
de Paraíso, em São Paulo. Se a referência for a classe C, dois terços dos moradores
de favelas são de classe média (Foto: Raimundo Pacco/Folhapress)
"A
classe mais importante em qualquer comunidade é a classe média, os homens de
vida módica, que vivem à base de milhares de dólares por ano ou perto disso”,
escreveu Walt Whitman na metade do século XIX. Whitman era jornalista e também
poeta, e por esse ofício entrou para a história. Naquele ano de 1858, em que
percebeu a relevância da classe média, o jornalista Whitman deu um furo. Percebia
que o destino do país estava atrelado definitivamente àquela grande parcela da
população com renda alta o bastante para se educar, criticar, influenciar e
recusar trocar seu voto por benesses populistas.
Ao
mesmo tempo, essa parcela da população, bem diferente dos ricos, dependia do próprio
trabalho e não podia ignorar crises e trapalhadas econômicas de governos
incompetentes. Whitman entendeu o conceito, mas não chegou nem perto de
definir, precisamente, que habitantes dos Estados Unidos formavam a classe média.
Não foi culpa dele. Essa conceituação continua, até hoje, a confundir. E,
quando é usada por governos, serve para dourar a realidade.
Por
não haver uma definição indiscutível desse grupo, governantes tendem a adotar
ou a criar as que melhor se adaptem a sua conveniência. Classificar vastos
contingentes da população como de “classe média”, em vez de “pobres”, faz
qualquer governo parecer mais eficaz.
A prática
leva a contradições evidentes. No Brasil, tratar toda a classe C como classe média
significa afirmar também que são de classe média 65% dos moradores de favelas
no país. Na China e na Índia, o inegável enriquecimento, por vezes, nubla os
fatos: a população é, majoritariamente, pobre. Há várias formas objetivas de
identificar a classe média, e elas contam diferentes histórias sobre a real
melhora do Brasil e do mundo.
Uma
dessas formas é descobrir onde estão as famílias com poder considerável para
comprar bens e serviços, sob o ponto de vista de vendedores de qualquer lugar
do planeta. O critério pode parecer injustamente rigoroso com nações muito
pequenas ou pobres. Não é o caso do Brasil, um país extremamente desigual, mas
com renda per capita de média para alta e com preços e salários elevados,
diante da média mundial. Com esse enfoque, a consultoria Ernst & Young (EY)
chegou a uma definição própria, a partir de estudos iniciados em 2010 pela
Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Num
relatório recente, a EY denomina como pertencentes à “classe média global” os
indivíduos com rendimento diário entre US$ 10 e US$ 100, uma renda mensal
equivalente, agora, à faixa entre R$ 660 e R$ 6.600. O governo brasileiro
considera de classe média os cidadãos com renda entre R$ 291 e R$ 1.019. Pelo
critério do governo, a classe média é maioria no Brasil: 53% dos habitantes. Pelo
critério da EY, a classe média encolhe para 41%, e os pobres são a maior parte
da população.
INDICADOR
RUIM Barraca de comércio popular em São Paulo. A classe C consome mais, mas se
endivida perigosamente (Foto: Diego Padgurschi/Folhapress)
INDICADOR
RUIM
Barraca
de comércio popular em São Paulo. A classe C consome mais, mas se endivida
perigosamente (Foto: Diego Padgurschi/Folhapress)
Embora
possa parecer renda de rico para os milhões de brasileiros pobres, a faixa
proposta pela EY ainda inclui famílias com ganhos módicos. É um grupo próspero
o bastante para consumir eletrodomésticos, carros, lazer, educação e serviços
de saúde, de forma semelhante em qualquer lugar do mundo, esteja na América
Latina, na África ou na América do Norte. O critério da EY é tão atacável
quanto qualquer outro. Tem a seu favor o objetivo de aplicação prática: presente
em 140 países, a EY tem de orientar seus clientes, interessados unicamente em
vender. No mundo, ainda mais que no Brasil, o critério rigoroso faria um
estrago terrível nos discursos de governantes.
Se o
adotarmos, em vez do critério mais frouxo do Banco Mundial, a fatia da população
classificada como classe média cai, globalmente, de 48% para 30% da humanidade.
Na China, a queda é de 62% para 11%. Para o Banco Mundial, pertence à classe média
quem tem rendimento diário entre US$ 2 e US$ 13 (o equivalente a uma renda
mensal entre R$ 132 e R$ 858). No Brasil, a definição foi dada em 2012 pela
Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), ligada à Presidência da República.
Esse
encolhimento estatístico em nada minimiza o impressionante movimento de ascensão
social ocorrido nas últimas décadas, no Brasil e no mundo. Por aqui, as classes
D (dos indiscutivelmente pobres) e E (dos miseráveis) diminuíram, à medida que
as famílias enriqueceram. A classe C ganhou 35 milhões de integrantes numa década
e concentra, hoje, a maioria dos empreendedores e consumidores. Esse grupo
passou a ver possibilidades reais de melhorar de vida. Obrigou empresas e
governos a trabalhar com escalas maiores de produção e infraestrutura.
“Para
os países que passam por transformações assim, o impacto é brutal. Aumenta o
consumo de produtos industrializados, a exigência por serviços, como educação e
transporte”, diz André Ferreira, sócio líder de mercados estratégicos da EY. Mesmo
pelo critério exigente dos consultores, o movimento de ascensão nos países
emergentes continua perceptível. Hoje, 60% da classe média global vive na
Europa e na América do Norte. Em 2030, esses 60% deverão estar na Ásia.
Mesmo
se nos ativermos apenas aos critérios econômicos, é possível construir
conceitos mais sólidos que uma faixa de renda. Em 2011, os economistas Luis
Lopez-Calva e Eduardo Ortiz-Juarez, do Banco Mundial, mostraram quão frágil era
a classe média de México, Chile e Peru, três países emergentes que também
exibem resultados de enriquecimento impressionante na última década.
Eles
dividiram a classe média oficial entre domicílios vulneráveis e não vulneráveis
a cair na pobreza. Nos três países, tanto nas cidades como no campo, os domicílios
vulneráveis superavam os não vulneráveis. No Brasil, o governo leva em
consideração apenas a renda corrente, de que o indivíduo dispõe no mês. “Ao
considerar apenas a renda corrente, o governo deixa o critério extremamente
pobre”, afirma o professor José Mazzon, da Faculdade de Economia e Administração
da USP. “A mudança de comportamento no consumo ocorreu, em parte, por causa da
expansão do crédito.
A
população se endividou.” Em 2012, as dívidas comprometeram, em média, 42% da
renda das famílias brasileiras. Na classe C, essa fatia chegou a 47%. A própria
SAE reconhece as limitações do critério exclusivamente por renda, que chama de “unidimensional”.
No relatório de 2012, em que conceituou a classe média brasileira, o governo
explicita sua opção pela simplicidade.
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Ruth de Aquino: Você quer mesmo um Brasil melhor?
Tal
simplicidade tem seu valor, além de rechear facilmente os discursos com números
impressionantes. Ela permite que o governo defina políticas públicas mais fáceis
de compreender. Com a simplicidade, porém, vem o perigo de acomodação e percepção
distorcida da realidade. Um país de classe média certamente tem menos de que
reclamar e menos a exigir. Não sem motivo, o Partido Trabalhista britânico e o
Partido Democrata americano debatem o uso indiscriminado, por seus filiados, da
expressão “classe média” para designar a maior parte da população, de que se
apresentam como defensores.
As
alas mais à esquerda dessas agremiações temem perder a identidade com os mais
pobres. No Reino Unido, os trabalhistas mais à esquerda preferem usar “classe
trabalhadora”, quando se referem a todos que dependem de salário. No Brasil, o
sociólogo Jessé de Souza, da Universidade Federal de Juiz de Fora, chama a
classe C de “batalhadora”, em vez de classe média.
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Investimentos: como se beneficiar da alta dos juros
Na
origem, “média” é um conceito puramente matemático. Todos os estudiosos do
tema, porém, reconhecem que a expressão “classe média” ganhou contornos mais
sofisticados, que podem incluir visão de mundo, educação e aspirações. A sociedade
ganharia na qualidade do debate público se considerasse os fatores que permitem
ao cidadão manter seu padrão de vida, mesmo em momentos mais difíceis. Um
desses fatores é o grau de instrução – com mais anos de educação, aumentam as
chances de o indivíduo buscar outro emprego ou abrir um negócio próprio. Tal
segurança econômica deveria ser um traço característico e desejável em qualquer
grupo denominado classe média.
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