CRISTIANE SEGATTO
02/08/2013 15h56
Meninas domésticas: ninguém sabe,
ninguém viu
Enquanto
a nova lei garante os direitos das empregadas adultas, crianças cuidam da
cozinha
A
partir de que idade o trabalho é aceitável socialmente? A resposta varia de
acordo com o contexto histórico e econômico. No início do século XX, meu bisavô
italiano chegou famélico ao porto de Santos e foi trabalhar por quase nada nas
fazendas do interior de São Paulo. Meu avô nasceu em 1910, mas o documento
informa que ele é de 1906. Mentir a idade dos filhos para que eles pudessem
começar a trabalhar mais cedo era um cambalacho corriqueiro entre os imigrantes
pobres.
Forte
como um touro, meu avô fez trabalho braçal desde a infância. Rapazote, já casado
e morando na capital, transportava lenha em carro de boi para abastecer os
fornos de grandes indústrias. Estudou até a quarta série.
Meu
pai progrediu um pouquinho mais. Chegou à oitava série e sempre fez trabalho
administrativo. Aos 14 anos, estava empregado como office-boy.
Tentei
seguir o bom exemplo, mas aos 14 anos ninguém queria me dar emprego. Meu
primeiro posto, com carteira assinada e todos os direitos legais, foi
conquistado aos 16 anos. Trabalhava numa biblioteca universitária, o melhor dos
mundos para quem sonhava ser jornalista. Estudava à noite, em escola pública. Alcancei
o mestrado.
Minha
filha estuda em escola particular. Aos 13 anos, me pergunta de que forma
poderia ganhar algum dinheiro sem prejuízo da saúde e dos estudos. Quer ser
independente como a mãe e fazer uma poupança para morar no Exterior.
A
disposição para o trabalho é uma qualidade que os pais devem estimular. Não
tenho a menor intenção de poupar minha filha do trabalho indefinidamente. Primeiro,
os garotos que viviam com conforto começavam a trabalhar depois do ensino médio.
Em seguida, essa fase foi postergada para depois da faculdade. Agora, ela vem
depois da pós-graduação. Onde isso vai parar?
Ter
começado a trabalhar cedo não me trouxe qualquer prejuízo físico, emocional ou
educacional. Trabalho faz bem, desde que seja trabalho – e não exploração. Tive
a sorte de conseguir cedo, e de acordo com a lei, um emprego que contribuiu
para minha formação intelectual. Poucos adolescentes trabalhadores têm essa
chance.
Minha
família é um exemplo da ascensão social ocorrida no Brasil nas últimas décadas.
O país melhorou. Nos últimos 20 anos, o Brasil registrou crescimento de 24% no Índice
de Desenvolvimento Humano (IDH), segundo a Organização das Nações Unidas. Passou
de 0,59 em 1990 para 0,73 em 2012. No ranking geral dos países (do melhor ao
pior IDH), o Brasil ocupa a 85ª posição. O índice é baseado em três dimensões: vida
longa e saudável, acesso ao conhecimento e padrão de vida decente.
Há poucos
meses, um acontecimento relacionado ao trabalho e ao padrão de vida decente foi
saudado como marco civilizatório. Depois de muito atraso, as empregadas domésticas
conquistaram os mesmos direitos dos demais trabalhadores. Foi um avanço, mas a
lei não garante direitos trabalhistas a uma categoria ainda mais vulnerável: a
das meninas e adolescentes que fazem trabalho doméstico. Sobre essa categoria,
ninguém sabe, ninguém viu.
É proibido
empregar menores de 18 anos nos serviços domésticos, mas essa é uma prática
corriqueira e culturalmente aceita em algumas regiões do Brasil. Uma avaliação
feita a partir de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domícilios (PNAD),
do IBGE, revela a extensão do problema: 258 mil pessoas de 5 a 17 anos estavam
ocupadas nos serviços domésticos em 2011. Em 2008, havia 325 mil trabalhadores
nessa faixa etária.
A
redução de 67 mil casos foi considerada pouco expressiva pelo Fórum Nacional de
Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil. Em 2008, um decreto do então
presidente Lula incluiu o trabalho doméstico na lista das piores formas de
trabalho infantil. “Apesar do decreto, o Brasil não adotou medidas para
combater esse problema como deveria”, diz Isa Oliveira, secretária-executiva da
entidade.
Do
total de crianças e adolescentes que fazem serviços domésticos, 39,8% estão no
Nordeste e 25,9% no Sudeste. Depois vêm Norte (13,8%), Sul (13,5%) e Centro-Oeste
(7%). O maior crescimento ocorreu no Rio Grande do Norte. Em 2008, 6% da população
de 5 a 17 anos estava ocupada nessa atividade. Em 2011, a proporção havia
subido para 15,1%.
No
Maranhão, apenas na faixa de 10 a 13 anos, o número de meninas empregadas em
serviços domésticos aumentou de 1.795 (em 2008) para 5.910 (em 2011). No estado
do Rio de Janeiro, também houve crescimento: de 8.712 (em 2008) para 10.421. Entre
as regiões metropolitanas, Fortaleza apresentou a pior situação: 6.050 pessoas
de 5 a 17 anos fazendo trabalho doméstico.
A
situação pode piorar. Diante da dificuldade de contratar uma empregada adulta (mais
cara e rara no mercado), a classe média pode se sentir tentada a adotar a mão-de-obra
adolescente. “Esse risco existe, mas quem fizer isso estará descumprindo a lei
duas vezes”, diz Isa Oliveira.
Em
muitos casos, principalmente nas periferias das grandes cidades, quem emprega
uma criança ou adolescente é uma empregada doméstica adulta. Ela sai para
trabalhar num bairro de classe média e deixa uma menina cuidando da casa e dos
filhos.
É uma
solução caseira e ilegal que se reproduz onde falta creche, escola, saúde e
oportunidades. Crianças e adolescentes que trabalham nessas condições não vão à
escola ou não conseguem concluí-la com sucesso. Sofrem danos físicos e
emocionais. Esforços intensos, exposição ao fogo, movimentos repetitivos,
sobrecarga muscular, isolamento, abuso físico, psicológico e sexual. Enquanto
isso existir, o Brasil continuará bem longe do primeiro time no ranking de
desenvolvimento humano.
Cristiane
Segatto escreve às sextas-feiras
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