sábado, 3 de agosto de 2013

CRISTIANE SEGATTO
02/08/2013 15h56

Meninas domésticas: ninguém sabe, ninguém viu

Enquanto a nova lei garante os direitos das empregadas adultas, crianças cuidam da cozinha

A partir de que idade o trabalho é aceitável socialmente? A resposta varia de acordo com o contexto histórico e econômico. No início do século XX, meu bisavô italiano chegou famélico ao porto de Santos e foi trabalhar por quase nada nas fazendas do interior de São Paulo. Meu avô nasceu em 1910, mas o documento informa que ele é de 1906. Mentir a idade dos filhos para que eles pudessem começar a trabalhar mais cedo era um cambalacho corriqueiro entre os imigrantes pobres.

Forte como um touro, meu avô fez trabalho braçal desde a infância. Rapazote, já casado e morando na capital, transportava lenha em carro de boi para abastecer os fornos de grandes indústrias. Estudou até a quarta série.

Meu pai progrediu um pouquinho mais. Chegou à oitava série e sempre fez trabalho administrativo. Aos 14 anos, estava empregado como office-boy.

Tentei seguir o bom exemplo, mas aos 14 anos ninguém queria me dar emprego. Meu primeiro posto, com carteira assinada e todos os direitos legais, foi conquistado aos 16 anos. Trabalhava numa biblioteca universitária, o melhor dos mundos para quem sonhava ser jornalista. Estudava à noite, em escola pública. Alcancei o mestrado.

Minha filha estuda em escola particular. Aos 13 anos, me pergunta de que forma poderia ganhar algum dinheiro sem prejuízo da saúde e dos estudos. Quer ser independente como a mãe e fazer uma poupança para morar no Exterior.

A disposição para o trabalho é uma qualidade que os pais devem estimular. Não tenho a menor intenção de poupar minha filha do trabalho indefinidamente. Primeiro, os garotos que viviam com conforto começavam a trabalhar depois do ensino médio. Em seguida, essa fase foi postergada para depois da faculdade. Agora, ela vem depois da pós-graduação. Onde isso vai parar?

Ter começado a trabalhar cedo não me trouxe qualquer prejuízo físico, emocional ou educacional. Trabalho faz bem, desde que seja trabalho – e não exploração. Tive a sorte de conseguir cedo, e de acordo com a lei, um emprego que contribuiu para minha formação intelectual. Poucos adolescentes trabalhadores têm essa chance.

Minha família é um exemplo da ascensão social ocorrida no Brasil nas últimas décadas. O país melhorou. Nos últimos 20 anos, o Brasil registrou crescimento de 24% no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), segundo a Organização das Nações Unidas. Passou de 0,59 em 1990 para 0,73 em 2012. No ranking geral dos países (do melhor ao pior IDH), o Brasil ocupa a 85ª posição. O índice é baseado em três dimensões: vida longa e saudável, acesso ao conhecimento e padrão de vida decente.

Há poucos meses, um acontecimento relacionado ao trabalho e ao padrão de vida decente foi saudado como marco civilizatório. Depois de muito atraso, as empregadas domésticas conquistaram os mesmos direitos dos demais trabalhadores. Foi um avanço, mas a lei não garante direitos trabalhistas a uma categoria ainda mais vulnerável: a das meninas e adolescentes que fazem trabalho doméstico. Sobre essa categoria, ninguém sabe, ninguém viu.

É proibido empregar menores de 18 anos nos serviços domésticos, mas essa é uma prática corriqueira e culturalmente aceita em algumas regiões do Brasil. Uma avaliação feita a partir de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domícilios (PNAD), do IBGE, revela a extensão do problema: 258 mil pessoas de 5 a 17 anos estavam ocupadas nos serviços domésticos em 2011. Em 2008, havia 325 mil trabalhadores nessa faixa etária.

A redução de 67 mil casos foi considerada pouco expressiva pelo Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil. Em 2008, um decreto do então presidente Lula incluiu o trabalho doméstico na lista das piores formas de trabalho infantil. “Apesar do decreto, o Brasil não adotou medidas para combater esse problema como deveria”, diz Isa Oliveira, secretária-executiva da entidade.

Do total de crianças e adolescentes que fazem serviços domésticos, 39,8% estão no Nordeste e 25,9% no Sudeste. Depois vêm Norte (13,8%), Sul (13,5%) e Centro-Oeste (7%). O maior crescimento ocorreu no Rio Grande do Norte. Em 2008, 6% da população de 5 a 17 anos estava ocupada nessa atividade. Em 2011, a proporção havia subido para 15,1%.

No Maranhão, apenas na faixa de 10 a 13 anos, o número de meninas empregadas em serviços domésticos aumentou de 1.795 (em 2008) para 5.910 (em 2011). No estado do Rio de Janeiro, também houve crescimento: de 8.712 (em 2008) para 10.421. Entre as regiões metropolitanas, Fortaleza apresentou a pior situação: 6.050 pessoas de 5 a 17 anos fazendo trabalho doméstico.

A situação pode piorar. Diante da dificuldade de contratar uma empregada adulta (mais cara e rara no mercado), a classe média pode se sentir tentada a adotar a mão-de-obra adolescente. “Esse risco existe, mas quem fizer isso estará descumprindo a lei duas vezes”, diz Isa Oliveira.

Em muitos casos, principalmente nas periferias das grandes cidades, quem emprega uma criança ou adolescente é uma empregada doméstica adulta. Ela sai para trabalhar num bairro de classe média e deixa uma menina cuidando da casa e dos filhos.

É uma solução caseira e ilegal que se reproduz onde falta creche, escola, saúde e oportunidades. Crianças e adolescentes que trabalham nessas condições não vão à escola ou não conseguem concluí-la com sucesso. Sofrem danos físicos e emocionais. Esforços intensos, exposição ao fogo, movimentos repetitivos, sobrecarga muscular, isolamento, abuso físico, psicológico e sexual. Enquanto isso existir, o Brasil continuará bem longe do primeiro time no ranking de desenvolvimento humano.


Cristiane Segatto escreve às sextas-feiras

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