ENSAIO
A adúltera
O
segredo entre as pernas das mulheres
RESUMO
A série em que a "Ilustríssima" adianta os principais lançamentos do
ano apresenta trecho de "A Filosofia da Adúltera", reunião de ensaios
do colunista da Folha Luiz Felipe Pondé inspirados em Nelson Rodrigues. O texto
a seguir enfoca, a partir da peça "Perdoa-me por Me Traíres", o
embate entre culpa, pecado e desejo.
LUIZ
FELIPE PONDÉ
"Não
se abandona uma adúltera."
Nelson
Rodrigues, em "Perdoa-Me Por Me Traíres"
JÁ DISSE
VÁRIAS VEZES que o segredo do mundo se encontra entre as pernas das mulheres. Claro,
exagero. Mas nem tanto assim.
Para
quem gosta de mulher, parte da vida se resume aos seus movimentos pélvicos e
sua saliva. E seus tédios. Mas, ainda assim, se visitarmos a mais radical visão
evolucionária da pré-história humana, veremos que grande parte da vida em
bando, seus afetos (base da relação entre moral e religião, porque base fisiológica
e psicológica de ambas), suas guerras, suas festas e protoinstituições
encontram sua ancestralidade funcional no calor úmido entre as pernas das
mulheres.
O
afeto feminino é úmido e quente. No entanto, para mim, esse fundamento científico
pouco importa; não faço ciência aqui e quase nunca.
Onde
nascem os famosos sistemas de parentesco, de que falam os antropólogos, se não
entre as pernas das mulheres? Dirão que sou sexista, porque, afinal, as
mulheres não geram parentesco por elas mesmas, mas com os homens. Pode ser; mas
os homens pouco me importam, talvez porque desde muito cedo percebi que as
mulheres são deliciosas e cheirosas, e tudo que penso nasce de sensações.
Desejo
é escravidão, e temperamento é destino. Como diria o cético escocês David Hume
no século 18, "knowledge is feelling" (conhecimento é sentimento). Com
o tempo, o temperamento se transforma em caráter. Faço filosofia sobre o que
está entre as pernas das mulheres porque gosto de estar entre as pernas das
mulheres, e não por alguma razão histórica defensável, apesar de que, como
disse acima acerca da teoria evolucionária, acho possível sustentar minha máxima
de que "o segredo do mundo se encontra entre as pernas das mulheres" com
alguma cientificidade, apesar de desprezar esse tipo de fundamentação.
Minha
simpatia pelo darwinismo é, antes de tudo, devida ao seu caráter dramático, e não
ao científico. Ou melhor, seu caráter estético. O fato de ele ser científico,
para mim, apenas aprofunda sua natureza operística.
Posso
me perder imaginando uma bela mulher que pertence a outro homem, de joelhos,
sendo uma amante infiel. Pedindo pelo amor de Deus para não levá-la a fazer o
que ela quer, mas sentindo-se culpada por querer. Talvez chore e trema, como de
costume, quando a culpa segue sua fisiologia.
A
culpa e o pecado são os maiores aliados do desejo que existem, e nesse sentido
Nelson está muito além da estupidez contemporânea que pensa, erroneamente, que "sexo
livre" dá tesão. É da natureza feminina desejar o que "dói".
E
também, como dizia Nelson, a prostituta não é a primeira profissão do mundo,
mas a sua vocação mais antiga. E essa vocação é a de desejar ser objeto do
homem que a possui, seu dono (mesmo que simbolicamente e por algum tempo). Mas
essa vocação não significa ausência de sofrimento ou de contradição: pelo contrário.
É a contradição que a deixa tão desejável em sua incapacidade de controlar seu ímpeto
de infidelidade. E se tornar uma adúltera.
SEGREDO
Essa contradição assume a forma de suor líquido, gosto, cheiro, gesto, gemidos,
restos, enfim, tudo aquilo que constitui o segredo da vida entre as pernas das
mulheres. E o desejo escorre pelas pernas. A adúltera revela o fracasso de toda
moral porque a interdição apaixona. Tornar-se objeto, coisa que se deixa mandar.
Mas
a adúltera na obra de Nelson é mais do que isso. Ela é um de seus arquétipos
essenciais para representar a condição humana.
Aliás,
Nelson também via as mulheres como objeto intenso de desejo e reflexão. Não é por
acaso que, quando Nelson fala de suicídios, homicídios e enterros, diz que,
quando o morto era uma mulher, tudo era mais dramático, interessante e intenso
para ele. Suspeito de que uma das razões para esse fato é ser ele um
heterossexual e, por isso mesmo,alguém que via parte do mundo e da vida mediado
pelo que há entre as pernas das mulheres.
Sexo
é destino, apesar de alguns quererem brincar dizendo que não, porque querem ter
o sexo do outro. Mas, ainda assim, é o sexo que é destino; nesse caso, o sexo
errado.
Pensar
através da adúltera é, antes de tudo, uma confissão de desejo pela mulher na
sua condição de filha de Eva, aquela primeira infiel.
Os
ensaios deste livro foram escritos sob o signo da adúltera: são as confissões
de um desgraçado que luta constantemente para não se perder no próprio desejo e
em suas inconsistências. A filosofia selvagem brota desse combate e do medo que
me acompanha o tempo todo.
Por
que não se abandona uma adúltera?
Em "Perdoa-me
por Me Traíres", o marido, que afirma que não se abandona uma adúltera,
representa a clássica posição de Nelson de que sexo demais é falta de amor. A
tese supõe que a mulher trai porque não é amada. Será verdade? Acho que não. Essa
hipótese de Nelson fala de sua idealização do amor.
Ela,
a adúltera, seria vítima, e não culpada, por isso o marido pede perdão a ela
por ela o ter traído, invertendo a lógica da frase.
Não
há dúvida de que, para Nelson, somos seres capturados numa armadilha interior: desejamos
um amor ideal, mas ele não existe. Como não existe, caímos em desgraça
inevitavelmente, e daí decorre tudo o mais.
Uma
das piores formas dessa idealização do amor é seu mal infinito: queremos sempre
mais e, quanto mais queremos, mais dependentes e inseguros ficamos. Ciúmes, delírios
de traição, impotência de controlar o outro. Por isso, a adúltera representa o
necessário fracasso de um animal atormentado por um desejo de amor sempre
impossível. O pecado moral nasce dessa vontade esmagada.
Não
importa o que você fizer: quanto mais amar, menos "bem resolvido" será.
Mas a indiferença apodrece. Por conta disso, sem o tormento do amor, você apodrece
--por isso só os neuróticos verão a Deus. Ou nos angustiamos ou apodrecemos,
dizia Nelson.
O
amor só se resolve quando morre ou quando vira amizade. Esse núcleo básico, que
é dramático em sentido dramatúrgico e dramático nos sentidos filosófico e
psicológico (porque descreve uma natureza humana em contínuo conflito consigo
mesma, o que aproxima Nelson de Freud), inviabiliza qualquer noção de afetos
corretos.
Nossa
era, tomada pela crença idiota na solução política e ideológica de tudo, parece
não entender esta aporia --doença que ele identificou no Brasil nos final dos
anos 1960 e, por isso, dentre outras razões, foi chamado de reacionário. Há uma
desordem afetiva no ser humano que todo mundo experimenta e, por isso, é necessário
mentir, muitas vezes como ato de misericórdia. "Mintam, pelo amor de Deus",
porque a verdade é insuportável.
O
autoconhecimento é uma forma de tormento. A tradição espiritual cristã é marcada
pela consciência de que conhecer a si mesmo é, antes de tudo, um ato de
autoimolação. Nossa fragilidade ontológica pede a mentira como modo de
sociabilidade e sensibilidade pedagógica.
Mas
o que no plano da convivência é uma necessidade, no plano do pensamento é uma
traição, por isso Nelson se dizia ex-covarde. Há que dizer a verdade, pelo
menos como forma de reconhecimento de nossa miséria e abandono.
Já em
sua infância, Nelson conheceu uma adúltera. Uma vizinha. Conta ele como a viu
num desfile de Carnaval ao lado do marido traído. Dois infelizes. O rosto dela
carregava a marca do fracasso e da vergonha. Linda como uma morta. O rosto dele
trazia o peso do homem que não consegue deixar de amar sua adúltera, e que também
é punido por todos.
Noutro
relato, Nelson conta como uma jovem belíssima e recém-casada foi chamada à casa
de um vizinho milionário, mais velho, que tenta seduzi-la com um colar de pérolas.
Ela recusa, ofendida, e reafirma sua fidelidade ao marido.
Quando
o marido chega em casa, ela conta a ele o ocorrido. Ele, pra surpresa da
infeliz, condena seu ato ingênuo de fidelidade e diz a ela que não se recusa um
colar de pérolas assim. As vizinhas todas concordam com ele.
Ela,
então, volta à casa do milionário e traz o colar de pérolas, e o joga na cara
do marido, que fica paralisado. As vizinhas todas, com a certeza tranquila do
bando, gritam: "Cachorra, adúltera".
Os
homens pouco me importam, talvez porque desde muito cedo percebi que as
mulheres são deliciosas e cheirosas, e tudo que penso nasce de sensações
Em "Perdoa-me
por Me Traíres", o marido representa a clássica posição de Nelson de que
sexo demais é falta de amor. A tese supõe que a mulher trai porque não é amada
A
prostituta não é a primeira profissão do mundo, mas a sua vocação mais antiga. E
essa vocação é a de desejar ser objeto do homem que a possui, seu dono
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