segunda-feira, 26 de agosto de 2013


26 de agosto de 2013 | N° 17534
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA

Milagre em Cachoeira

Leio no Jornal do Povo que a estátua de Nosso Senhor dos Passos, uma das mais antigas e impressionantes da hoje Catedral de Cachoeira, está sendo finalmente restaurada. Não bastassem seus sofrimentos, pungentemente talhados na madeira pelo cinzel de um genial, desconhecido artista, penou agora sete anos de esquisito, inexplicado exílio, durante os quais perdeu manto e cruz, se não a fé na humanidade.

Sei algo desse ancestral, pré-agônico Jesus. Passei, na distante década de 80, muitos janeiros na Granja da Penha e ia durante as tardes à cidade para conversas inesquecíveis com o historiador Fritz Strohschoen. Foi ele quem me revelou, com a sabedoria de pesquisador incansável de todos os arquivos ainda encontráveis (muitos acabaram criminosamente destruídos), um flagrante da vida real sepultado pela voragem das idades.

Houve, em ano indeterminado pelo apetite das traças, em todo caso da segunda metade do século 19, uma terrível epidemia em Cachoeira. Os mortos eram despejados em carroças e jogados em valas comuns no cemitério que dá vista para o rio. Nenhuma família deixou de sofrer perdas.

Foi quando maior era o desespero que os sobreviventes decidiram sair em procissão pelas ruas da Duquesa da Campanha com a imagem, pedindo aos céus o fim da tragédia. Ao chegarem de volta à Matriz, subitamente um dos braços do Cristo tombou, como se movido pelo dono. E a partir daquele instante cessou por milagre a peste.

Me acostumei a ver essa escultura, com seu manto púpura, no altar lateral direito da igreja, contemplada do da esquerda por uma palidíssima Senhora, esta em manto azul-noite. Depois da pavorosa hecatombe que desfigurou, pulverizou o templo (salvo apenas o altar do Santíssimo Sacramento numa capela, graças à lucidez, os esforços, a teimosia de meu centenário avô Achylles), tive interesse em saber que fim haviam levado as estátuas.

Um padre de passeata (alô Nélson Rodrigues) me conduziu, displicente, a um armário nos fundos da sacristia, remexeu colchas velhas e lá estavam ambas, desconjuntadas, me fitando com um olhar desolado e perplexo. O cura voltou-se para mim e sentenciou:

– Temos hoje expostas outras muito melhores, de gesso, bem modernas. O pior é que o reverendo falava sério. Como reza o Eclesiastes, o número de estultos é infinito.

Espero agora que não apenas o Senhor dos Passos, mas a Senhora das Dores, retornem à Catedral. Ou será muito pedir outro milagre como o que operou, em recuadas eras, Jesus Nosso Pai?



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