25
de agosto de 2013 | N° 17533
FABRÍCIO
CARPINEJAR
Última palavra
Quando Mariela anunciou que iria pegar suas coisas,
Everton rasgou em pedacinhos o cartão que contava a história do casal.
Esfacelou como um pão.
O
cartão descrevia como eles se conheceram, narrava os melhores momentos de seis
anos juntos, apontava as expressões que somente os dois conheciam e que
formavam um dialeto engraçado e comovente. Era o cartão de todos os cartões.
Uma aliança de papel.
Tinha
o tamanho de um cartaz. Para não ter mesmo lugar para guardar. Para repousar
nas prateleiras como um porta-retratos, para ser exibido entre os vasos como um
quadro, para surgir entre os objetos de estimação como uma escultura viva.
Homem
de poucas frases, que nunca escrevia, Everton superou seu laconismo e resolveu
o atrasado da linguagem em longo testamento.
Pediu
até para uma amiga professora de Português corrigir, não querendo passar
vergonha com erros de ortografia.
As
rosas que acompanhavam o texto secaram em uma semana, o que ficou foi a letra
dele. Pois o cartão sempre será a pétala que não murcha, mais importante do que
o buquê porque é a memória do buquê.
Possuído
pela fúria, Éverton sequer pensou duas vezes. Esfarinhou a homenagem em suas
mãos. Chorou o que podia com os cortes violentos das margens. Os dedos, afiados
em tesoura, desfiguraram o conjunto. Com o pedido de separação, buscou se
vingar destruindo sua declaração de amor. Sua única declaração de amor.
Depois
do vandalismo, ligou para Mariela:
–
Venha pegar suas roupas, mas saiba que rasguei o cartão que lhe dei.
– O
cartão era meu, não podia ter acabado com ele.
–
Você acabou comigo, o que adianta o cartão?
–
Não fala desse jeito. Onde ele está?
–
Está no lixo.
–
Vai lá e recolhe os pedaços.
–
Nunca. Nunca mais me abro para nenhuma mulher.
Éverton
desapareceu de casa por uma semana, a fim de deixá-la livre a separar e
encaixotar seus pertences.
Ao
regressar, surpreendeu-se com o cartão que havia rasgado em cima dos
travesseiros.
Todo
colado. Todo remontado. Um trabalho de recorte e cole tão imenso quando o dele
de escrever.
O
cartão lembrava o vitral de igreja que se casaram, com os retângulos formando
as imagens da caligrafia.
Estava
ainda mais bonito. Mais iluminado.
Ele
esqueceu o boicote e telefonou para Mariela:
–
Qual o sentido de recuperar o cartão? – perguntou.
– E
você ainda acha que a gente não tem conserto?
Com
o gesto absolutamente esperançoso, eles se prenderam um ao outro.
A
última palavra nada é perto de um novo beijo.
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