sábado, 24 de agosto de 2013


25 de agosto de 2013 | N° 17533
FABRÍCIO CARPINEJAR

Última palavra

Quando Mariela anunciou que iria pegar suas coisas, Everton rasgou em pedacinhos o cartão que contava a história do casal. Esfacelou como um pão.

O cartão descrevia como eles se conheceram, narrava os melhores momentos de seis anos juntos, apontava as expressões que somente os dois conheciam e que formavam um dialeto engraçado e comovente. Era o cartão de todos os cartões. Uma aliança de papel.

Tinha o tamanho de um cartaz. Para não ter mesmo lugar para guardar. Para repousar nas prateleiras como um porta-retratos, para ser exibido entre os vasos como um quadro, para surgir entre os objetos de estimação como uma escultura viva.

Homem de poucas frases, que nunca escrevia, Everton superou seu laconismo e resolveu o atrasado da linguagem em longo testamento.

Pediu até para uma amiga professora de Português corrigir, não querendo passar vergonha com erros de ortografia.

As rosas que acompanhavam o texto secaram em uma semana, o que ficou foi a letra dele. Pois o cartão sempre será a pétala que não murcha, mais importante do que o buquê porque é a memória do buquê.

Possuído pela fúria, Éverton sequer pensou duas vezes. Esfarinhou a homenagem em suas mãos. Chorou o que podia com os cortes violentos das margens. Os dedos, afiados em tesoura, desfiguraram o conjunto. Com o pedido de separação, buscou se vingar destruindo sua declaração de amor. Sua única declaração de amor.

Depois do vandalismo, ligou para Mariela:

– Venha pegar suas roupas, mas saiba que rasguei o cartão que lhe dei.

– O cartão era meu, não podia ter acabado com ele.

– Você acabou comigo, o que adianta o cartão?

– Não fala desse jeito. Onde ele está?

– Está no lixo.

– Vai lá e recolhe os pedaços.

– Nunca. Nunca mais me abro para nenhuma mulher.

Éverton desapareceu de casa por uma semana, a fim de deixá-la livre a separar e encaixotar seus pertences.

Ao regressar, surpreendeu-se com o cartão que havia rasgado em cima dos travesseiros.

Todo colado. Todo remontado. Um trabalho de recorte e cole tão imenso quando o dele de escrever.

O cartão lembrava o vitral de igreja que se casaram, com os retângulos formando as imagens da caligrafia.

Estava ainda mais bonito. Mais iluminado.

Ele esqueceu o boicote e telefonou para Mariela:

– Qual o sentido de recuperar o cartão? – perguntou.

– E você ainda acha que a gente não tem conserto?

Com o gesto absolutamente esperançoso, eles se prenderam um ao outro.


A última palavra nada é perto de um novo beijo.

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