ELIO
GASPARI
Me engana que eu gosto
A
primeira reação brasileira à detenção do parceiro do jornalista Glenn Greenwald
foi teatral e inócua
Com
o conhecimento do governo americano, a polícia inglesa deteve por cerca de nove
horas e interrogou no aeroporto de Heathrow o cidadão brasileiro David Miranda,
que desembarcara de um voo procedente de Berlim, a caminho do Rio de Janeiro.
O
chanceler Antonio Patriota disse que o episódio "não é justificável" e
informou que os dois governos continuarão tratando do caso. Já o embaixador da
Grã-Bretanha em Brasília foi mais preciso: o assunto "continua sendo uma
questão operacional da Polícia Metropolitana de Londres". Aleluia: Sua
Majestade tem um governo que fala claro na defesa dos seus interesses.
Patriota
precisa definir o que "não é justificável", pois o embaixador inglês
justificou-se. Nada de novo. Em julho de 2005 o brasileiro Jean Charles de
Menezes, que vivia em Londres com todos os papéis em ordem, saiu de casa,
entrou num vagão de metrô e tomou sete tiros na cabeça. A Polícia Metropolitana
de Londres confundira-o com um terrorista e "lamentou o episódio". Sua
família recebeu uma indenização de cem mil libras.
Cinco
anos depois, Tony Blair, o primeiro-ministro da ocasião, publicou um livro de
memórias no qual lamentou o "terrível erro", lembrando que ficou "profundamente
entristecido pelos policiais que estavam agindo de boa-fé, tentando garantir a
segurança do país". Aleluia de novo. Os governantes ingleses defendem suas
polícias. Já as autoridades brasileiras agem de maneira diversa: depois da
morte de Jean Charles, Blair foi convidado para prestar serviços de consultoria
ao Rio de Janeiro, preparando-o para a Olimpíada.
Nessa
época o governo inglês tentava criar, nos aeroportos de Pindorama, barreiras
para viajantes brasileiros. Milhares de nativos eram deportados ao descer em
aeroportos europeus. Uma pesquisadora da Universidade de São Paulo foi
recambiada de Madrid enquanto estava a caminho de Lisboa. Só depois de alguma
gritaria o Itamaraty adotou um critério de reciprocidade, devolvendo espanhóis.
Veio a crise e hoje é a Espanha que manda gente para o Brasil, sempre bem
recebida.
Em
julho o doutor Patriota repudiou o procedimento dos governos de Portugal,
Espanha, França e Itália, que negaram direito de sobrevoo ao avião do
presidente Evo Morales porque supunha-se que tinha a bordo o americano Edward
Snowden. Deu em que? Detiveram o companheiro do jornalista americano que
divulgou os documentos secretos coletados pelo ex-funcionário da CIA.
Se
governos da Europa e dos Estados Unidos acreditam que suas leis especiais
justificam-se porque o combate ao terrorismo é um conflito mundial, o receituário
da Guerra Fria poderia ser ressuscitado. O governo brasileiro conhece as
identidades dos funcionários ingleses que trabalham para o serviço de informações
e vivem aqui, sob o guarda-chuva diplomático. Basta pedir que um deles retorne
ao seu país, o que não chega a ser uma punição pessoal.
Seria
apenas um gesto capaz de materializar o desagrado do governo, como fez a rainha
Vitória com o ditador boliviano Melgarejo. Ele amarrara o embaixador inglês a
uma mula e a soberana mandou bombardear La Paz. Ao saber que a cidade ficava
fora do alcance de seus canhões, riscou a Bolívia de seu mapa e declarou que
ela não existia mais.
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