A rara flor da poesia
13
de agosto de 2013 | 2h 14
ARNALDO
JABOR - O Estado de S.Paulo
Vi o
filme novo de Bruno Barreto, Flores Raras, previsto para entrar em cartaz esta
semana. Uma história de amor entre duas mulheres nos anos 50/60 no Rio. O filme
tem uma delicadeza rara hoje em nosso cinema, cheio de neochanchadas para
arrasar quarteirões e embrutecer mais ainda o imaginário das plateias. Flores
Raras não; tem um clima quase "de época" na mise-en-scène, pois
retrata ainda o tempo da delicadeza e da ilusão - praias, montanhas e sol
cegando a cidade para seus problemas. É um dos belos filmes de Bruno, como Dona
Flor ou o Romance da Empregada. Duas mulheres se amam: Lota e Elizabeth Bishop.
Muita
gente não sabe quem foi Elizabeth Bishop, nem é obrigada a saber. Trata-se de
uma grande poeta americana que, em 1951, passou pelo Brasil, apaixonou-se pela
brasileira Lota de Macedo Soares, intelectual da elite carioca, e aqui ficou
por 16 anos, entre grandes alegrias, sofrimentos, crises de alcoolismo e
extraordinários poemas. Lota era assessora de Carlos Lacerda e comandou a
construção do nosso "Central Park" - no Aterro do Flamengo, contra os
vorazes políticos picaretas que queriam tomar conta da área.
Ali,
consumiu sua saúde e seu amor por Bishop. Sempre ouvi falar de Elizabeth
Bishop, mas só fui ler seus poemas há poucos anos, quando saiu a excelente
tradução de Paulo Henriques Britto. Por que não li na época, eu que gostava
tanto de poesia? Porque (deliciem-se, patrulheiros...) como ela era "caso"
de Lota, assessora de Carlos Lacerda, o inimigo máximo da esquerda janguista,
ficava feio ler seus trabalhos. Ela era uma "americana lésbica" e,
certamente, "reacionária" - palavras devastadoras para nós. Éramos
assim em1967.
No
entanto, Bishop não era apenas uma "boa poetisa". Ela está no nível
de Marianne Moore, Roberto Lowell e outros; tem uma poesia seca e dolorida, um
amor transbordante e contido, uma poesia afetiva das "coisas", como
fez Francis Ponge, João Cabral, Moore e, lá longe, John Donne. Elizabeth Bishop
fez uma poesia não lamentosa, uma poesia crítica e seca, com forte nostalgia
romântica, sem a melancolia paralisada de outro gênio como Emily Dickinson.
Bishop
escreveu muitos poemas sobre o Brasil dos anos 50 e 60, nos quais se vê,
mesclada a uma irritação "calvinista" com nossas mazelas, uma
profunda compaixão pelo desamparo social, um amor raríssimo pela fragilidade do
povo, poucas vezes encontrado em poetas brasileiros.
Elizabeth
Bishop não era de "esquerda nem de direita", como se dividiam todos
naquela época (e ainda hoje).
Era
uma liberal americana, com olhos anglo-saxões, que assistiu como uma "brasilianista
artística", a anos cruciais de nossa história: a morte de Getúlio, JK, Jânio,
e até o golpe militar de 1964. É curioso ver que sua vida piora enquanto o
Brasil piora. E Elizabeth tem nesse tempo a antevisão dolorosa do futuro difícil
que esperava nosso País. Ela vê uma infraestrutura secular de equívocos que estão
nas instituições como um veneno que tudo contamina. Elizabeth viu além das
ideologias, além dos dogmas.
Ela
escreve: "Como país, acho que o Brasil não tem saída - não é trágico como
o México não; é apenas letárgico, egoísta, autocomplacente, meio maluco". Mas,
mesmo assim, tem amor por ele: "Um País onde a gente se sente de algum
modo mais perto da verdadeira vida, a de antigamente. (...) Com todos os seus
horrores e estupidez, uma parte do mundo perdido ainda não se perdeu aqui".
Seu
olhar profundo se detinha sobre os sintomas do que nos acontecia e poderia
continuar acontecendo. Ela viu os indícios de tragédia e paralisia que se
ocultavam por trás do egoísmo da direita udenista e também da iludida
generosidade "de esquerda", ela viu que uma maldade profunda nos
regia, que uma impiedade secular comandava nosso atraso. Ela poderia ter
escrito, no mesmo tom de Eça de Queiroz, cem anos antes, sobre o Brasil:
"O
País perdeu a inteligência e a consciência moral. Não há princípio que não seja
desmentido nem instituição que não seja escarnecida. Já não se crê na
honestidade dos homens públicos. A classe média abate-se progressivamente na
imbecilidade e na inércia. Os serviços públicos abandonados a uma rotina
dormente. O desprezo pelas ideias aumenta a cada dia. A ignorância pesa sobre o
povo como um nevoeiro. A intriga política alastra-se por sobre a sonolência
enfastiada do País. Não é uma existência; é uma expiação".
Seus
poemas sofisticadíssimos desciam ao nosso chão:
"Sob
a falsa amendoeira/ uma puta ainda menina/dança um chá-chá-chá, girando/como um
átomo na esquina (...) na sombra negra de meu prédio/ um negro levanta a camisa/
pra mostrar um curativo/ cobrindo negra ferida/ com um bafo de cachaça/ potente
feito bazuca/ aponta a bandagem branca/ e me diz coisas malucas/ dou-lhe
dinheiro e boa-noite/ por força do hábito. Ah!/ não haveria uma palavra/ mais
relevante pra lhe dar?"
Perguntem
a qualquer ladrão de gravata de Brasília e todos dirão de mãos postas e olhos
em alvo que "o povo é sagrado".
Nós
costumamos idealizar epicamente o povo ou o ignoramos com empáfia; nós
costumamos rir de sua ignorância ou transformamos a zona geral, a bagunça, em
uma espécie de orgulho cultural, como se o fracasso permanente e outras bossas
fossem uma "riqueza macunaímica" - o tesouro de nosso destino de "malandros
inzoneiros".
Elizabeth
Bishop não. Ela olha cada ferida aberta, olha o negro bêbado, a cadela leprosa
na rua, a solidão do bandido Micuçu no morro da Babilônia, o doente morrendo na
maca no rio Amazonas, os bolos coloridos de mau gosto na padaria, as sandálias
de plástico das pobres mães com bebês em Ouro Preto, provérbios em para-choques
de caminhões, os pobres diabos jogando absurdas peladas no capim por toda a
parte, os tatus e corujas fugindo da queimada, crianças doentes brincando na
lama, toda essa desgraça vegetando no meio de majestosas paisagens cortadas por
cachoeiras e florestas. E chora, tomando porres homéricos nos botequins mais
sujos.
Bishop
amava o Brasil com olhos mais fundos do que nós.
Nenhum comentário:
Postar um comentário