ANTONIO
PRATA
Laranjas e chocolates
Preferia
crer que há uma intenção por trás de tudo, mas me revigoro em minha descrença
ao ler certos autores
Para
o León Ferrari
Sei
que o papa já foi embora há uma semana e talvez seja um pouco tarde para falar
de Deus. Acontece que, apesar dos milhões em Copacabana, da lama em Guaratiba,
do justificado louvor e dos louváveis protestos causados pela visita do santo
padre, o assunto só bateu aqui na porta quinta-feira à noite, quando a Stella,
vizinha da frente, apareceu para conhecer minha filha.
Stella
é americana e viveu no Brooklin, NY, até se apaixonar por um pianista
brasileiro, nos anos 60. Veio passar um Réveillon nos trópicos e lá se vão 50
anos. No dia em que me mudei, precisei dar um telefonema, meu celular estava
sem sinal, bati em sua porta. Uma semana depois, passei por um desses caminhões
que vendem frutas, na esquina, vi umas laranjas lindíssimas, uma pilha de sóis
poentes sobre o mar azul da caçamba, comprei um saco pra ela.
Inimizades
precisam de pouco para surgir; amizades, felizmente, também. Um telefone,
algumas dúzias de laranjas e pronto: ambos soubemos que havia alguém com quem
se podia contar, do outro lado da rua. Talvez por isso ela tenha ficado
incomodada com meu sorriso vacilante, quando, depois de conhecer minha filha, despediu-se
com um "fiquem com Deus". Stella me encarou por um tempo, curiosa.
"Você não acredita em Deus?" "Não."
Senti
a decepção no rosto da minha vizinha. Não a decepção boba de quem passasse a me
ver como um herege, um pecador, mas uma tristeza genuína: deixávamos de
compartilhar um elo que, para ela, talvez fosse o maior. Stella me sorriu, um
tanto compadecida.
Às
vezes também me compadeço de mim. Preferia crer que há uma intenção por trás de
tudo, que as cordas que amarram nossas existências são mais consistentes do que
o programa de uma casa de shows no Brooklin, a má qualidade da telefonia,
laranjas na caçamba de um caminhão. Então abro um livro, leio um poema do
Drummond, do Fernando Pessoa ou do Vinicius e me revigoro em minha descrença.
Apesar
de lamentar terrivelmente não ter qualquer esperança no além, acredito que o
ateísmo --quando amparado por boa poesia, pelo menos-- é uma concepção mais
elegante, mais profunda e que encerra mais respeito à vida do que a fé em Deus.
Que eu exista, que você exista, que haja árvores que dão frutos e frutos que dão
sementes, que esses frutos sejam doces justamente para que eu e você os comamos
e espalhemos as sementes... Não é infinitamente mais belo se nada disso fizer
parte de roteiro algum? Veja o universo, que coisa fantástica. Pra que serve?
Pra nada: eis o grande milagre.
"E
depois que a gente morre, o que você acha que acontece?", perguntou minha
vizinha. "Acaba." "Nossa, é muito triste pensar assim." É. E
quanto mais triste me parece, mais bonito fica. Do pó viemos, ao pó voltaremos,
cá estamos neste "caminho entre dois túmulos", sabendo que "não
há metafísica no mundo senão chocolates" e, contudo, vez por outra, nos
botamos "comovidos como o diabo".
Stella
foi embora. Olhei a carinha da minha filha, em seu ninho de cobertores e uns últimos
versos vieram em meu auxílio, "Hoje a noite é jovem; da morte, apenas/Nascemos,
imensamente". Depois fui comer chocolates.
@antonioprata
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