07
de fevereiro de 2013 | N° 17336
L. F.
VERISSIMO
A filha do tempo
Ricardo
III, cuja ossada acaba de ser descoberta sob um estacionamento em Londres, é o
melhor – ou, no caso, o pior – dos vilões de Shakespeare. Nenhum outro tem,
como ele, tanta consciência da própria vilania e a exerce com tanto gosto.
O
Ricardo III do Shakespeare e da História é um monstro que manda matar seus
pequenos sobrinhos para herdar o trono, seduz a viúva de um homem que acaba de
matar e comete um sortimento de maldades para se manter no poder – sempre
festejando seu próprio mau caráter.
Foi
o último rei da Inglaterra a morrer em combate e, segundo Shakespeare, na véspera
da batalha em que perderia a vida (pedindo “Um cavalo, um cavalo, meu reino por
um cavalo!”), é visitado pelos fantasmas de suas vítimas, e ouve de todos a
mesma imprecação: “Desespera e morre!”.
Mas
Ricardo III pode ter sido injustiçado pela História e por Shakespeare. Uma
escritora escocesa de livros policiais chamada Josephine Tey colocou o herói de
várias das suas histórias, o inspetor Alan Grant, da Scotland Yard, numa cama
de hospital com uma perna quebrada e sem nada para fazer. Para combater o tédio,
Grant resolve investigar, usando apenas livros e documentos que lhe são
fornecidos por um amigo pesquisador, a verdadeira história do suposto tirano.
A
conclusão do inspetor e da sua criadora é que Ricardo III não era nada do que
diziam dele. Talvez a sua deformidade física – ele era corcunda, o que foi
comprovado pela ossada recém recuperada – tenha contribuído para a sua fama de
monstro. Mas não há registro histórico da sua monstruosidade.
Nenhum
documento da época menciona as pobres crianças presas na Torre de Londres até o
tio desalmado mandar matá-las. E, além de tudo, Grant, contemplando um retrato
dele pintado na época, deduz que aquela não é a cara de um assassino. Antes, é de
um doce de pessoa.
O título
do livro de Josephine Tey é A Filha do Tempo. Vem da frase de autor
desconhecido: “A verdade é filha do tempo” . Os fatos que geram a História são
alterados pela má memória, pela interpretação conveniente, pela ornamentação
fantasiosa, por tudo que vem com o tempo depois do fato. Com o tempo, o mito
vira realidade e a realidade vira mito. Mas é só dar mais tempo ao tempo, que a
verdade aparecerá.
O
exame dos ossos de Ricardo III não revelará nada sobre sua personalidade, mas é
provável que o novo interesse pela sua figura resulte numa correção da injustiça.
O que não seria mais do que a História está lhe devendo.
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