PASQUALE CIPRO NETO
'Mortes e lasanha de
cavalo'
Caro
Simão, perdoe-me por roubar material para a sua coluna! A mulher pariu o
marido! E entre 12 mortos
Dia
desses, citei neste espaço um pensamento de um velho companheiro de trabalho
("Não há limite para o pior", diz ele há décadas). No que diz
respeito ao que se faz com a escrita, com certos textos e com certos títulos
jornalísticos -péssimos, horrendos e, sobretudo, inacreditáveis-, parece que o
velho companheiro tem razão.
Ontem,
estupefacto, vi num site, no meio de títulos que remetiam a bobagens e bobagens
relativas ao Carnaval (quem é a musa, quem tem a bunda mais isso e mais aquilo,
qual é o casal mais isso e aquilo), a seguinte pérola: "Carnaval tem mais
mortes na Kiss e lasanha de cavalo".
Carlos
Drummond de Andrade morreria de inveja da quebra do paralelismo produzida pelo
uso de "mortes" e "lasanha" como complementos do mesmo verbo
("ter"). Drummond abre o antológico "Soneto da Perdida
Esperança" com estes versos: "Perdi o bonde e a esperança. Volto
pálido para casa". A quebra do paralelismo gerada pelo uso de
"bonde" (substantivo concreto) e "esperança" (abstrato)
como complementos da mesma forma verbal ("perdi") instaura o clima
para que o Mestre trate com profundidade de um dos eternos dilemas humanos (a
perda da esperança e a necessidade de continuar, de buscar o eterno).
O
que me diz o leitor de "Carnaval tem mais mortes na Kiss e lasanha de
cavalo"? Não é mesmo para matar de inveja Drummond e outros nobres da
literatura? Não bastasse o fato de a Kiss estar fechada há uns bons dias (a
morte citada ocorreu num hospital -trata-se de mais uma vítima do que houve na
discoteca), ainda é preciso aguentar o humor funéreo produzido pela associação
"morte/lasanha". Deus meu! Como faz falta a leitura dos grandes
autores, clássicos ou modernos!
O
episódio mostra bem a penúria ideológica dos dias de hoje. Vale tudo; tudo é
notícia (por 15 segundos); tudo tem relação com tudo; tudo cabe no mesmo balaio
(incêndio na discoteca, lasanha de carne de cavalo e por aí vai). Santa
renúncia do papa! Enquanto o assunto ferveu (por algumas horas), a bobajada
ficou em segundo plano e se produziram frases e textos um pouco mais conexos
(mas os títulos...).
Por
falar em título, veja esta outra preciosidade, do início de janeiro:
"Aplicativo que acha táxi criado por brasileiro é levado a cinco
países". Elaiá! O que terá criado esse intrépido brasileiro? Um táxi? Ou
um aplicativo? A leitura do texto (e, horas mais tarde, do próprio título, que
foi corrigido e redigido como manda o figurino) deixava claro que esse
brasileiro criou um aplicativo que localiza táxis.
A
salvação para o título é elementar, elementaríssima: basta mudar a ordem das
palavras. Vamos lá: "Criado por brasileiro, aplicativo que localiza/acha
táxi é levado a cinco países". Simples assim. Elementar.
E o
verbo "ter"? Elaiá, elaiá, elaiá! Veja este título, fresquinho:
"Sílvio Santos tem uma praça com o seu nome". Viva! Melhor do que
isso, só isto, que foi ao ar num telejornal: "A mulher teve o marido entre
os 12 mortos". Caro Zé Simão, perdoe-me por roubar material para a sua
coluna! A mulher pariu o marido! E no meio de 12 cadáveres! Cruz-credo! O
marido deve ser o próprio satanás.
Será
que não dá para dar uma parada, uma paradinha que seja nesse uso desenfreado e
horroroso do verbo "ter"? Será que é difícil perceber que basta dizer
"O marido de Fulana de Tal é um dos 12 mortos"?
Vale
a pena citar também o emprego no mínimo estranho do pronome possessivo
"seu" ("Silvio Santos tem uma praça com o seu nome"). Com o
nome de quem? Dele? E, já que Sílvio Santos "tem" uma praça, essa
praça pertence a ele, é propriedade dele? "Libera nos, Domine." É
isso.
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