23
de fevereiro de 2013 | N° 17352
PAULO
SANT’ANA
O tempo de meu
pai
Nunca
me sai da lembrança aquele dia em que fui até o cemitério para assistir ao
cadáver de meu pai, entre quatro velas de cera.
Pensei
comigo, por mais que meu pai me tenha maltratado, o que seria de mim sem ele.
Era
estranho o que eu sentia. De certo modo, eu me sentia libertado dos maus-tratos
que ele me infligira durante toda a minha infância e adolescência. Por outro
lado, a dependência que sentia por ele me jogava num destino incerto.
E
dali a pouco meu pai desceria para a sepultura. Seu fêmur, suas vísceras, seus
maxilares, seus rins e seu coração estariam cobertos pela terra e os vermes o
devorariam.
Eu
estava pensando nisso porque no tempo de meu pai não havia tantos assaltos e
crimes outros em nosso meio. Eram três ou quatro assaltos por ano em Porto
Alegre, imaginem.
O
que acontecia todos os dias eram batedores de carteiras que atacavam nos bondes
principalmente, nos ônibus raramente. Nas calçadas das casas da Cidade Baixa e
de outros bairros, as pessoas deitavam-se em cadeiras preguiçosas, nas praças
havia o bulício da criançada conduzida por seus pais.
Não
havia qualquer risco em deixar as portas e as janelas das casas abertas. De
ladrão, não se ouvia quase falar. Nunca também se ouvira falar naquele tempo,
quase nunca, em um assalto a banco ou a restaurante.
E,
no tempo de meu pai, como era o trânsito da cidade, hein? Olhem, podiam ser
vistas nas ruas charretes sendo puxadas por cavalos e carroças por burros.
Era
quase bucólica a paisagem da cidade. Em muitos bairros da Capital, havia
imensos campos com bois pastando e muitas criações de porcos. Porto Alegre
apenas engatinhava no rumo de vir a ser uma metrópole.
Essas
eram as coisas boas da cidade. Mas havia as ruins. A cidade era infestada de
mosquitos, uma praga. Uma vez apareceu por aqui o saudoso secretário da Saúde
Lamaison Porto, que se encarregou de combater a praga dos mosquitos. Não era
moleza enfrentar à noite os mosquitos, eles infernizavam o sono dos
habitantes.E havia também espalhados e encravados nas casas os percevejos, um
inseto asqueroso. Pois nunca mais ouvi falar de percevejos em Porto Alegre. A
praga foi debelada.
E só
de vez em quando surge lá pela minha casa um bandinho de mosquitos: o ar
condicionado liquidou de vez com os mosquitos. Ratos? Ouvia-se falar muito mais
de ratos naquele tempo. Por sinal, não havia residência que não tivesse ratos.
Eram uma festa para os gatos.
A
saúde pública teve grandes avanços a partir do tempo de meu pai. Hoje, por
exemplo, não ouço mais falar nem leio pelos jornais sobre a lepra. E,
antigamente, a lepra era temível. Havia um leprosário em Itapuã, zona sul aqui
de Porto Alegre, que era mais temido que a Casa de Correção, o Presídio Central
daquele tempo.
Havia
muita coisa melhor do que hoje no tempo de meu pai. Mas havia também muita
coisa pior.
No
balanço geral, o progresso foi bom e foi ruim para nós. Mas a vida precisa
andar e faz-se imprescindível o progresso. Se bem que ele tirou um pouco do
valor da inocência e da poesia.
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