terça-feira, 19 de fevereiro de 2013



19 de fevereiro de 2013 | N° 17348
FABRÍCIO CARPINEJAR

O piano da sala

Não fica com dó ao enxergar um piano parado, totalmente sem uso, num apartamento?

Não sente um remorso? Não considera um desperdício?

Tão caro e tão abandonado. Tão valioso e tão calado.

O piano no canto, como uma lareira em eterno verão. De vez em quando, crianças abrem sua tampa e desafinam as teclas. De vez em quando, uma visita rompe sua solidão, sopra o pó da manta e dedilha a trilha da Pantera Cor-de-Rosa. E é só.

Nada mais. Não existem recitais, saraus, festas. Nenhuma musa se debruçará na cauda para cantar Cole Porter. Nenhum estardalhaço é reservado àquele hóspede negro, brilhante e silencioso na sala.

Não bate ânsia de telefonar para os Mensageiros da Caridade e encaminhar o instrumento a um jovem concertista?

Pois é, somos diferentes. Eu não sofro nenhum problema com pianos abandonados. Não farei denúncia. Não abrirei a boca. Não subirei no púlpito para pregar sermão contra o luxo e a favor da necessidade.

Pelo contrário, tenho cócegas de ternura. É um indício de lealdade.

Sempre confiei em mulher que mantém um piano e não é pianista.

Sempre confiei. Será fiel pela vida inteira.

Não julgará aparências, oferecerá toda paciência para acolher ritmos distintos, acomodará o antigo e o novo, alheia à pressão do conforto.

Deve ter um moletom surrado no fundo do armário, um baú com as sapatilhas da infância e uma gaveta abarrotada de cartas de amor.

Uma mulher que conserva o piano da família não se desfaz do artesanato da infância. Respeita as histórias que vieram antes dela, reza na hora de dormir, toma café engolindo a fumaça, olha lentamente a janela de manhã para escolher a roupa.

Reserva espaço ao que não tem serventia, reserva um pouco do seu território para aquilo que não domina.

Não glorifica o que produz sentido imediato. Não força talentos e façanhas. Defende o mistério e aceita as incompreensões.

Tem noção de que nem tudo entra pela porta, que uma janela tem seu valor.

Não despreza a herança dos pais, não queima a bagagem extraviada, não anula as cicatrizes, não renega o que não é aproveitado, não usa somente o que interessa.

Não se mostrará prática, objetiva e indiferente, muito menos jogará fora o que não é do seu tempo e que não nasceu do seu esforço.

Não dará ultimato, não ameaçará despejo, não venderá a memória, não vai expor as confidências.

Acredita ainda em casar-se e na genealogia do romance.

Acredita que um dia aprenderá música. Ou seu filho. Ou seu neto.

Um piano em casa é esperança.

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