WALCYR
CARRASCO
Depois da
tragédia
Estamos
em pleno Carnaval, mas a tragédia de Santa Maria ainda ecoa nos corações. Entre
um ziriguidum e outro, de repente alguém lança um olhar no salão superlotado e
pergunta a si mesmo:
– E
se pegar fogo?
Esperei
para falar do assunto. Queria avaliar a atuação dos órgãos públicos. Aconteceu
o previsto: um tsunami de fiscalização inundou o país. No Rio de Janeiro,
fecharam até espaços públicos. No centro de São Paulo, em pleno Carnaval, casas
noturnas tradicionais não funcionam mais. E daí?
Falou-se
muito sobre um choque de fiscalização. É importante, claro. Mas queria ouvir
sobre uma reestruturação mais profunda. Explico: você, em São Paulo, já tentou
legalizar uma obra? A reforma de uma casa? Conseguir o carimbo de “Habite-se”?
Eu já.
Certa
vez, comprei uma casa no Morumbi. Enviei a planta da reforma, que nem aumentava
a área já existente. Durante um ano, trabalhamos munidos apenas de um
protocolo, porque a autorização não saía. Mudei. Mais um ano e ainda não
conseguira legalizar a casa. Recebia avisos de “Comunique-se”.
A
cada um, nova exigência. Quando comparecia, eu pedia somente que todas as
exigências fossem feitas de uma vez, para cumpri-las. Impossível. Gastei uma
fortuna em plantas, sempre refeitas. Finalmente capitulei. Contratei um sujeito
especializado no processo de aprovação de plantas. O que ele fez, eu imagino.
Em 15 dias, saiu o “Habite-se”.
Imagino
o que passa alguém que queira legalizar uma casa noturna. Ou teatro. Em São
Paulo, é impossível legalizar um carrinho de cachorro quente. Juro. Um amigo
certa vez botou na cabeça que se tornaria milionário montando uma rede de hot
dog. Tipo Nova York, onde há um carrinho em cada esquina. Tentou uma licença
por todos os meios. Impossível. Finalmente, o encarregado na prefeitura
aconselhou:
–
Desista. Isso não é para um sujeito como você. Vai ter de enfrentar muita
barra-pesada.
Houve
o previsto: um choque de fiscalização. Mas e a corrupção em todos os níveis de
órgãos públicos?
O
futuro empresário teimou. Comprou uma van e estacionou numa esquina com seus
hot dogs. Foi ameaçado de morte por vendedores que já estavam por lá.
Combinados com fiscais que vigiavam a área, o expulsaram. O hot dog é ilegal,
mas os fiscais não enxergam os carrinhos quando interessa. Finalmente, meu
amigo desistiu.
Repassou
o financiamento da van a outra futura empresária. Fez contrato de gaveta
porque, legalmente, não conseguiu transferir. A compradora não pagou as
prestações e ainda atropelou alguém. Ele queria fazer tudo de acordo com a lei.
Mas ficou com o nome sujo, dívida nas costas e ainda respondeu a processo
criminal, como proprietário oficial do veículo.
Imagino
o que é montar uma casa noturna! Espaços são abertos com protocolos na mão. Inclusive
restaurantes elegantes. O sujeito comprou o ponto, paga aluguel, vai esperar
dois anos pela vistoria? Mais fácil se haver com fiscais que topam facilitar. O
negócio começa a funcionar, e os fiscais continuam fazendo vista grossa. Vale
para qualquer classe. Alguém já viu policial pagar conta em bar? O dono do
estabelecimento prefere oferecer.
Vai
que tem alguma coisa errada? Quando acontece a tragédia, vem o choque. Por que
a surpresa? Todo mundo está farto de saber que há corrupção em todos os níveis
dos órgãos públicos. Convivemos com isso.
Os
encarregados de fiscalizar em Santa Maria responderão por homicídio? Duvido.
Houve só uma gritaria, devido à pressão da imprensa. Sinceramente, nem sei se a
lei permite processar o sujeito que fechou os olhos. E seus superiores,
responsáveis em instância maior.
Resolver
seria possível. Por exemplo: se todo o processo fosse informatizado, a planta
seria entregue pela internet. Se cumprisse as especificações, o interessado
poderia tirar o alvará da obra em algumas horas. A imensa cadeia de carimbos
existentes para a aprovação perderia o sentido.
Da
mesma forma, ocorreria com as outras exigências. O alvará de funcionamento,
sim, dependeria de visitas dos técnicos responsáveis, que fiscalizariam o
cumprimento das regras. Se conseguiram informatizar o Imposto de Renda com
tanta perfeição, por que não fazem o mesmo em relação a outras áreas?
A
resposta até dói de tão simples: não interessa.
Muita
gente ganha com as dificuldades. A ilegalidade se tornou regra porque dá grana.
Outra
tragédia pode acontecer a qualquer momento. Vamos nos chocar. Chorar. Lamentar.
Mas a mudança estrutural nem foi cogitada. É mais lucrativo deixar como está,
até a próxima lágrima
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