16
de fevereiro de 2013 | N° 17345
CELSO
GUTFREIND (interino)
Depoimento
A
Andréa, da Secretaria de Cultura, pediu um depoimento. Eu vou dar. Ele poderia
vir encadeado como uma prosa, cortado como uma poesia. Veio como uma crônica.
Viria, de qualquer forma, porque eu fui. Eu fui à Vila de Passagem, um
assentamento de famílias no bairro Rio Branco. Levou-me um acordo entre o
Instituto Estadual do Livro e o município de Canoas.
A
Vila de Passagem é repleta de famílias pobres. Há muitos cachorros, galinhas,
passarinhos, piolhos. Contei dois carrapatos, na volta. Subiam à direita do meu
jeans. Detalhes ínfimos diante do essencial: as crianças. As famílias estão
meio amontoadas, enquanto esperam as casas definitivas.
As
crianças estudam em escolas públicas. É fevereiro, estão de férias. Faz muito
calor. Não há ventilador em suas casas. Nem ar-condicionado. Há um auditório
feito de tapumes no meio das habitações improvisadas. Há tráfico de drogas no
entorno. Violência, tédio, falta do que fazer.
Não
para as crianças. Encontro-as agitadíssimas, com a Maria Pepe. Elas agora me
esperam como são. Com a mesma verdade que tentei pôr nos livros. Somos
semelhantes, reunidos pela realidade. Elas estão agitadas do calor verdadeiro.
Eu, também. Temperatura nenhuma nos tira dali. Tem bebês, adolescentes.
Os
adolescentes cuidam dos bebês. Há um cachorro no recinto. De repente, começamos
a contar e a ouvir. A atenção é curta. Elas a prestam depois que emprestamos a
nossa. O cachorro (com os carrapatos) também presta.
Improvisamos
uma bola colorida no meio das histórias. Somos contadores, temos esperança.
Contar nos anima. Propomos um teatro da vida. Todos topam representar. As
crianças entram na cena, cantam pagodes, fazem perguntas; de vez em quando se
batem, mas somos firmes na ternura e logo voltam a ouvir.
São
bonitas, sensíveis, inteligentes. Entenderam que, durante as histórias, não se
agride. Bate-se muito mais através do que se conta. Querem saber a minha idade
e anuncio meio século. Perguntam a da Maria Pepe, ela não quer dizer.
Então,
invento a dela, mas não precisava. Elas entenderam que estamos ali para
aprender a inventar. Como em meu primeiro conto, quando uma menina não quis
dançar comigo. No conto, ela dançou. Elas dizem que hoje eu posso dançar com a
Maria Pepe. A roda do mundo gira, a ficção ajuda a empurrar. Elas entenderam
tudo. Dançamos.
Sabemos
do inóspito, porque somos gente. Não precisamos ter cuidado de bebês na
adolescência ou sofrer calor e frio para entender. É o que querem de nós, que a
gente as acolha e se ocupe delas enquanto seus pais não podem. São pequenas e
crescerão. Um dia, estarão prontas. Para imaginar no meio do inóspito. Para
desviar do nada. Para driblar o tráfico. A violência e agarrar a vida.
Para
que, daqui a meio século, estejam vivas para dar o seu depoimento.
Cláudia
Laitano está em férias e retorna em 2 de março
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