CONTARDO
CALLIGARIS
Saudade de ideias
perigosas
Sinto
falta de uma época em que havia livros proibidos, e a leitura ameaçava
transformar o mundo
NO
MEIO do Carnaval, para decidir meu voto (por correspondência) nas eleições
políticas italianas, conversei por telefone com meu irmão, que vive em Milão. A
meu ver, em qualquer ocasião, deveria votar só quem vive na sociedade que será
modificada pelo resultado da eleição. Como italiano vivendo no Brasil, eu
deveria votar no Brasil, e não na Itália.
Seja
como for, meu irmão e eu concordamos. Votaríamos para obter resultados
parecidos:
1)
resistir ao populismo regionalista da "Lega Nord" (que tem um
discurso do tipo: mandemos embora os estrangeiros e voltemos a falar dialeto,
tudo dará certo se ficarmos entre nós);
2)
resistir ao populismo do Movimento Cinque Stelle, cinco estrelas (seu animador,
Beppe Grillo, nos faz pensar na Itália das comédias de Lina Wertmüller -o país
do qual fugi);
3)
apoiar a centro-esquerda (sem nem pensar que o Partito Democratico seja
herdeiro do antigo partido comunista, no qual militei -essa lembrança teria
semeado a discórdia entre nós);
4)
não reprovar o trabalho de saneamento básico feito pelo primeiro ministro
Monti;
5)
impedir a volta de Berlusconi.
Fato
notável, desde os anos 1990, meu irmão e eu conseguimos conversar de política.
A razão é simples: nem eu nem ele defendemos mais grandes ideias. Acabou a
época de Marx contra Adam Smith, Gramsci contra Luigi Einaudi etc. Estamos
prontos para uma democracia em que não se enfrentam projetos de sociedade, só
questões concretas, em referendo: você é a favor ou contra o casamento gay? A
eutanásia? A pesquisa com células-tronco?
Também
nestes dias recebi o e-mail pelo qual Marina Silva convida para um encontro, em
Brasília, do qual deve sair um novo "instrumento político" (ninguém
quer mais falar em partido, é compreensível).
As
palavras finais do convite vão na direção da política concreta que me permite
conversar com meu irmão: "Podemos contribuir para recuperar o espaço da
política para a prática do bem comum, do serviço, da afirmação dos direitos e
deveres da cidadania. Podemos contribuir para democratizar a democracia".
É
uma esperança e tanto. E aprovo que a política seja uma arte de pensar o
concreto, e não um debate ou conflito de ideias e ideais. Mas não deixo de
sentir saudade.
Dei-me
conta disso ao assistir ao extraordinário "O Amante da Rainha", de
Nikolaj Arcel. Contrariamente a Luiz Felipe Pondé, em sua última coluna, o que
me tocou não foi a história de amor, mas a lembrança de uma época em que havia
livros proibidos, porque sua leitura ameaçava transformar o mundo.
Rousseau
não é meu iluminista preferido, mas, para o bem ou o mal, é um dos pilares do
pensamento moderno. Em 2009, um bonito exemplar da primeira edição do
"Contrat Social" (Amsterdam, 1762) custou quase US$ 50 mil (R$ 100
mil).
Logo
após sua publicação, em vários lugares da Europa, o mesmo exemplar custava
infinitamente menos, mas saía mais caro: guardar o livro na estante de casa
podia valer uma estadia na prisão, ou coisa pior.
Nas
partes do mundo que me são familiares (a Europa e as Américas -sobretudo a do
Norte), faz apenas algumas décadas (não mais do que isso) que não há livros
cuja posse seja comprometedora -algumas décadas que os governos deixaram de se
preocupar com a difusão de opiniões "subversivas".
Nasci
na Europa depois do fim do fascismo e do nazismo. Não vivi na América do Sul
durante as ditaduras militares. Por sorte, fui só turista na Espanha franquista
e no Portugal salazarista -nunca tive que viver lá. Sorte maior ainda, nunca
tive que passar mais de duas ou três semanas do outro lado da Cortina de Ferro
ou em países comunistas da Ásia ou da América Central.
O
mesmo vale para Estados confessionais. Em conclusão, nunca vivi debaixo de
governos que temessem a difusão de ideias a ponto de tentar impedi-la à força.
Mesmo
assim, desde o começo da modernidade até poucas décadas atrás (até a queda do
Muro de Berlim?), os livros eram tratados como armas potencialmente perigosas.
Enquanto hoje, no fundo, eles e suas ideias parecem, antes de mais nada,
indiferentes. O que aconteceu?
Foucault
responderia, provavelmente, que a grande estratégia do poder contemporâneo é a
permissividade: se é permitido dizer tudo e qualquer coisa, por que discutir,
por que lutar por qualquer ideia? Fale e deixe falar. Não é?
ccalligari@uol.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário