sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013



15 de fevereiro de 2013 | N° 17344
DAVID COIMBRA

A modelo do metrô

Não sei como eles conseguem, mas os ingleses têm uma técnica para não olhar uns para os outros quando estão no metrô. O vagão está lotadíssimo, não cabe mais ninguém, restou gente na plataforma esperando o próximo carro. Quer dizer: quem está lá dentro está a centímetros das outras pessoas. E, mesmo assim, mesmo tendo o nariz quase colado no nariz de alguém, o inglês lança o olhar para o vazio e não encara o colega de viagem. Acho até que é por isso que os ingleses leem tanto no metrô, por isso que eles lidam tanto com seus celulares. Para não olhar para os outros.

Sou brasileiro, gaúcho, porto-alegrense. Cresci com esse hábito de olhar para as outras pessoas na rua. Mas não muito – tento não ser indiscreto. Se sentir que a outra pessoa percebeu, viro a cara. No entanto, adquiri a perturbadora mania de olhar para uma pessoa e ficar imaginando quem ela é. Trata-se de algo mais forte do que eu, algo irresistível.

Lá vem um sujeito levando para passear um cachorrinho minúsculo pela coleira. Ele tem um ar triste, e penso que está fazendo aquilo porque a mulher o obrigou. Ele tomou café da manhã, queria continuar lendo o jornal, mas a mulher mostrou-lhe a guia do maldito cãozinho e ordenou que ele o levasse para passear.

Então, o pobre coitado suspira e sai, de chinelas mesmo (na verdade, nem vi se ele estava de chinelas).

Ele leva aquele cachorro pela rua e pensa em como sua vida é modorrenta, como odeia suavemente tudo o que faz, lembra que um dia foi apaixonado por uma menina linda que trabalhava com ele no escritório e que, por uma graça do Senhor, a menina um dia riu para ele e disse que gostava dele e ele até saiu duas ou três vezes com ela e achou que deveria largar tudo por ela, mas, no fim, foi covarde, optou pela comodidade, e agora está ali, puxando aquele cachorrinho desgraçado que vai fazer cocô lá adiante e ele terá de limpar o cocô do cachorro para não ser xingado pela síndica do prédio e ele vai limpar o cocô e carregar o cocô até uma lixeira improvável, já que não existe lixeira por ali, o que significa que terá de colocar o cocô dentro de um saco plástico e esse saco plástico com cocô ele levará na mão ou dentro do bolso, isso até em casa, e só aí é que se livrará do cocô e do cachorro, como ele odeia essa vida.

São essas bobagens que imagino quando vejo alguém.

Bem, agora, nesses meus dias londrinos, em que tenho de andar muito de metrô, decidi que, na Inglaterra, deveria fazer como os ingleses. Assim, nada de observar os outros e imaginar o que eles são. Eu me contentaria com meus pensamentos. Como um inglês.

Estava alcançando bom sucesso nisso, até que aquela garota entrou no vagão. Era bonita, sim, mas não foi sua beleza que me chamou a atenção. O que quero dizer é que não senti interesse sexual por ela. O que me chamou a atenção é que ela era um ser humano interessante.

Ela tinha o cabelo descolorido e cortado de uma forma que nunca havia visto antes: num lado do crânio o cabelo estava quase raspado; no outro, uma cascata branca corria-lhe até o pescoço. A franja também estava cortada em degraus. Vestia um casaco peludo lilás. Ou roxo. Ou fúcsia. Por baixo, meias pretas. E umas botinas também peludas e também de uma dessas cores arroxeadas. Entrou numa ponta do vagão, passou por mim e foi para a outra.

Era uma pessoa para se olhar, mas decidi que não o faria. Só que, de repente, meu cérebro indisciplinado supôs que ela deveria ser checa, ucraniana ou russa. Resolvi que era ucraniana. Obviamente, era modelo. Uma mulher que não é modelo não se veste assim para sair à rua. Mas devia estar no começo da carreira, ou não andaria de metrô. Vai ver, morava com outras seis meninas numa apartamento no subúrbio, odiava uma espanhola que pegava suas coisas na geladeira, era apaixonada por um italiano que a enganava e agora pensava em seus pais, tão pobres lá na distante Kiev, coitadinha da garota...

Mas, não!, gritei para mim mesmo, voltando à realidade. Não! Na Inglaterra, faça como os ingleses, eles é que estão certos, são discretos, não se metem com os outros, não são chatos.

Nesse momento em que me censurava, o trem parou e ela desembarcou. Não queria olhar, mas olhei-a saindo e passando em frente à janela. E foi aí, nesse instante, que ela lançou um olhar para dentro do carro e desenhou no rosto um sorriso pela metade. Surpreso, pensei: será que sorriu por que olhei para ela?

Ou sorriu por ter lembrado de algo doce da infância ucraniana? Sua vaidade de mulher foi enfim satisfeita, depois de tanta indiferença, mesmo que por um sujeito insignificante dentro de um trem. Pensei também que... Aí olhei para fora de novo e vi que ela já ia longe, longe, pisando no mundo com a segurança típica das modelos ucranianas.

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