PASQUALE CIPRO NETO
'Acho que a chuva ajuda a
gente a se...'
Nos
versos de 'Chuva, Suor e Cerveja' em que há aliteração, Caetano vai além da
definição do 'Houaiss'
Os
meus leitores fiéis sabem que não dou a mínima para o Carnaval. Na verdade, não
é bem assim, porque não é a mínima que não dou; dou a máxima, já que simplesmente
fujo dele. Carnaval? Me inclua fora dessa, por favor. Aos que ficam, bom
proveito!
Esse
pavor do Carnaval não me impede de gostar dos memoráveis sambas, frevos e
marchinhas que gênios deste país produziram e produzem desde sempre. Algumas
dessas obras-primas são de Caetano Veloso, que, diferentemente deste escriba,
adora o Carnaval, o verdadeiro, o de rua, como se deduz por estes versos da
antológica "Um Frevo Novo": "Todo mundo na praça / e muita gente
sem graça no salão".
O
caro leitor notou o duplo valor da expressão "sem graça"? Captou? Dou
uma ajuda: "sem graça" qualifica definitivamente "gente"
("gente sem graça" = "gente chocha", "que não cheira
nem fede") ou existe aí um verbo subentendido ("muita gente que, no
salão, fica sem graça")?
Na
mesma canção, Caetano costura uma das suas inúmeras referências intertextuais
ao retomar o célebre poema "Ao Povo o Poder", do grande poeta baiano
Castro Alves ("A praça? / A praça é do povo / Como o céu é do condor").
Caetano começa a letra de "Um frevo Novo" assim: "A praça Castro
Alves é do povo / como o céu é do avião".
Parece
desnecessário explicar a "adaptação aos tempos modernos" que Caetano
faz dos versos de Castro Alves, certo? Mas não é desnecessário explicar que a
praça Castro Alves existe, sim, e é um dos grandes redutos (talvez o principal)
das manifestações populares dos soteropolitanos.
Embora
estejamos num tempo de leitura escassa, de compreensão quase zero e de pouca ou
nenhuma valorização da cultura clássica, ainda há alguns concursos públicos (vestibulares,
por exemplo) que "insistem" em avaliar a competência intertextual dos
candidatos, o que, na verdade, equivale a avaliar o quanto de bagagem cultural
cada um desses meninos traz.
De
certa forma, enoja-me essa coisa de alguém dar importância a algo só porque os
concursos exigem, isto é, enoja-me essa visão utilitarista. Melhor mesmo é, por
puro prazer, por pura inquietação intelectual e existencial, entender os diálogos
que um texto mantém com outros. Cá entre nós, assim a leitura faz muito mais
sentido, não?
Mas
voltemos ao tema "Carnaval" nas canções de Caetano. Na não menos
brilhante "Chuva, Suor e Cerveja", Caetano relata o que "rola"
num comboio carnavalesco de rua ("Não saia do meu lado / Segure o meu
Pierrô molhado / E vamos embora ladeira abaixo"). O grande protagonista de
alguns dos versos dessa canção é a aliteração, figura que o "Houaiss"
assim define: "Repetição de fonemas idênticos ou parecidos no início de várias
palavras na mesma frase ou verso, visando obter efeito estilístico na prosa poética
e na poesia". Em seguida, o dicionário dá este exemplo: "Rápido, o
raio risca o céu e ribomba". A aliteração está na repetição do fonema
expresso pelo "r".
Nos
versos de "Chuva, Suor e Cerveja" em que há aliteração, Caetano vai muito
além da definição do "Houaiss". Vejamos: "Acho que a chuva ajuda
a gente a se ver / (...) A gente se embala / Se embora / Se embola / Só para na
porta da igreja...". Que lhe parece a aliteração de "Acho que a chuva
ajuda a gente a se ver"? Leia várias vezes. Ouviu o "barulho" da
chuva na sequência "ch" (de "acho" e "chuva"), "j"
(de "ajuda") e "g" (de "gente")? Leia o trecho de
novo, por favor.
Vamos
aos versos seguintes: "A gente se embala / Se embora / Se embola...".
Notou o efeito da repetição do fonema de "b"? Não parece fidelíssima
a representação escrita, poética do "bolo" humano?
Cá entre
nós, caro leitor, dá até vontade de gostar de Carnaval, mas... Tô fora. Literalmente.
É isso.
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