quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013


PASQUALE CIPRO NETO

'Acho que a chuva ajuda a gente a se...'

Nos versos de 'Chuva, Suor e Cerveja' em que há aliteração, Caetano vai além da definição do 'Houaiss'

Os meus leitores fiéis sabem que não dou a mínima para o Carnaval. Na verdade, não é bem assim, porque não é a mínima que não dou; dou a máxima, já que simplesmente fujo dele. Carnaval? Me inclua fora dessa, por favor. Aos que ficam, bom proveito!

Esse pavor do Carnaval não me impede de gostar dos memoráveis sambas, frevos e marchinhas que gênios deste país produziram e produzem desde sempre. Algumas dessas obras-primas são de Caetano Veloso, que, diferentemente deste escriba, adora o Carnaval, o verdadeiro, o de rua, como se deduz por estes versos da antológica "Um Frevo Novo": "Todo mundo na praça / e muita gente sem graça no salão".

O caro leitor notou o duplo valor da expressão "sem graça"? Captou? Dou uma ajuda: "sem graça" qualifica definitivamente "gente" ("gente sem graça" = "gente chocha", "que não cheira nem fede") ou existe aí um verbo subentendido ("muita gente que, no salão, fica sem graça")?

Na mesma canção, Caetano costura uma das suas inúmeras referências intertextuais ao retomar o célebre poema "Ao Povo o Poder", do grande poeta baiano Castro Alves ("A praça? / A praça é do povo / Como o céu é do condor"). Caetano começa a letra de "Um frevo Novo" assim: "A praça Castro Alves é do povo / como o céu é do avião".

Parece desnecessário explicar a "adaptação aos tempos modernos" que Caetano faz dos versos de Castro Alves, certo? Mas não é desnecessário explicar que a praça Castro Alves existe, sim, e é um dos grandes redutos (talvez o principal) das manifestações populares dos soteropolitanos.

Embora estejamos num tempo de leitura escassa, de compreensão quase zero e de pouca ou nenhuma valorização da cultura clássica, ainda há alguns concursos públicos (vestibulares, por exemplo) que "insistem" em avaliar a competência intertextual dos candidatos, o que, na verdade, equivale a avaliar o quanto de bagagem cultural cada um desses meninos traz.

De certa forma, enoja-me essa coisa de alguém dar importância a algo só porque os concursos exigem, isto é, enoja-me essa visão utilitarista. Melhor mesmo é, por puro prazer, por pura inquietação intelectual e existencial, entender os diálogos que um texto mantém com outros. Cá entre nós, assim a leitura faz muito mais sentido, não?

Mas voltemos ao tema "Carnaval" nas canções de Caetano. Na não menos brilhante "Chuva, Suor e Cerveja", Caetano relata o que "rola" num comboio carnavalesco de rua ("Não saia do meu lado / Segure o meu Pierrô molhado / E vamos embora ladeira abaixo"). O grande protagonista de alguns dos versos dessa canção é a aliteração, figura que o "Houaiss" assim define: "Repetição de fonemas idênticos ou parecidos no início de várias palavras na mesma frase ou verso, visando obter efeito estilístico na prosa poética e na poesia". Em seguida, o dicionário dá este exemplo: "Rápido, o raio risca o céu e ribomba". A aliteração está na repetição do fonema expresso pelo "r".

Nos versos de "Chuva, Suor e Cerveja" em que há aliteração, Caetano vai muito além da definição do "Houaiss". Vejamos: "Acho que a chuva ajuda a gente a se ver / (...) A gente se embala / Se embora / Se embola / Só para na porta da igreja...". Que lhe parece a aliteração de "Acho que a chuva ajuda a gente a se ver"? Leia várias vezes. Ouviu o "barulho" da chuva na sequência "ch" (de "acho" e "chuva"), "j" (de "ajuda") e "g" (de "gente")? Leia o trecho de novo, por favor.

Vamos aos versos seguintes: "A gente se embala / Se embora / Se embola...". Notou o efeito da repetição do fonema de "b"? Não parece fidelíssima a representação escrita, poética do "bolo" humano?

Cá entre nós, caro leitor, dá até vontade de gostar de Carnaval, mas... Tô fora. Literalmente. É isso.

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