08
de fevereiro de 2013 | N° 17337
DAVID
COIMBRA
Uma cena clássica em
Londres
Fui
testemunha de uma cena clássica, outro dia, em Londres. Clássica.
Estava
distraído no metrô, o carro parado na estação de Oxford Circus. A voz feminina
do sistema de som pediu que as pessoas tivessem cuidado com o “gap” entre o
vagão e a plataforma, as portas se abriram e uma onda de passageiros escoou
para fora. Então, uma carteira surgiu no chão do trem.
Era uma carteira cor de laranja, supus que
fosse de mulher, por ser muito chamativa. Uma carteira bem fornida, decerto com
documentos, vá lá que alguns pounds. Tinha o tamanho da palma da mão de um
homem. Devia pertencer a alguém que havia saído naquele exato instante.
Olhei
para a carteira, outros passageiros no entorno olharam também. Aí, um senhor de
óculos se abaixou, colheu-a como se fosse um cravo gentil e, gentilmente, a
depositou num encosto do vagão. Deixou-a ali, e todos a deixaram. O trem
seguiu, serpenteando pelos intestinos da terra milenar de Londres, e os grupos
de passageiros foram sendo trocados a cada estação.
Fiquei
observando a reação deles ante a carteira que continuava deitada no encosto do
trem. Eles a viam, viravam as cabeças e voltavam a se fazer o que estavam
fazendo antes: lendo o jornal que ganharam na entrada da estação, lidando com o
celular ou pensando, simplesmente pensando.
Mas
não se engane. Não cheguei à conclusão de que os ingleses são mais honestos do
que os brasileiros devido a esse episódio. Só que também não acho que os
brasileiros reagiriam da mesma forma diante de uma carteira perdida. Uns iam
embolsá-la descaradamente, outros furtivamente, e também haveria quem pegasse a
carteira, anunciasse em bom volume a descoberta e a entregasse para um
funcionário da estação. O certo é que os brasileiros não ficariam indiferentes
à carteira. Os ingleses ficaram.
Por
quê? Não é pelo diferenciado quociente de honestidade dos dois povos. É porque
os ingleses, ao contrário dos brasileiros, têm o hábito de não se meter na vida
dos outros. Tal característica pode ser distinguida com clareza, precisamente,
no metrô. Ninguém olha para ninguém, no metrô.
Os
ingleses estão ensimesmados, ocupados com seus próprios assuntos. Alguém pode
achar que isso é muito solitário, que os ingleses não se preocupam com as
outras pessoas. É o contrário. Essa é uma prova de respeito às outras pessoas.
Quem não respeita o outro invade o espaço do outro sem convite. O que pode
ocorrer de inúmeras formas, inclusive com um olhar insistente dentro de um
trem.
Quando
alguém respeita a privacidade alheia, em geral respeita também os direitos da
coletividade. Porque essa pessoa, esse respeitador da privacidade, compreende
que as pessoas precisam de espaço e regras para conviver bem.
Não
é que o brasileiro seja mais desonesto do que outros povos; o brasileiro é mais
individualista. Por ser individualista, preza o seu espaço, mas despreza o dos
outros. Por isso, acha que pode tudo, e olha quando não deve olhar, pega o que
não tem de pegar, deixa de fazer o que deveria fazer, simplesmente por ser a
sua vontade.
É o
nosso individualismo que nos faz tomar carteiras perdidas. E que nos faz dar de
ombros a normas de segurança, como no caso da boate de Santa Maria. O
individualismo, maldito individualismo. Que é mais do que individualismo: é,
pura e desgraçadamente, egoísmo.
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