terça-feira, 12 de fevereiro de 2013



12 de fevereiro de 2013 | N° 17341
LUÍS AUGUSTO FISCHER

DEU

Por causa do meu Dicionário de Porto-alegrês, não passa mês sem alguém me consultar, ou provocar, ou ponderar algo em torno da nossa fala. Eu me esforço para explicar o que alcanço entender, sempre atento para manter as fantasias fora do cenário. A que me refiro com “fantasia”?

Ao seguinte: perdi a conta de quantas vezes recebi e-mails, telefonemas ou comentários ao vivo de gente afirmando, com límpida (e errada) certeza, que sabia exatamente quem havia criado a gíria tal ou qual. Lembro de um sujeito, certa vez, bastante brabo comigo porque eu não tinha consignado no meu dicionário que a expressão “viajar na maionese” tinha sido criada por ele mesmo, certo dia, num churrasco em sua casa, diante da própria.

Agora andou circulando outra dessas fantasias: a expressão “deu pra ti” teria nascido da boca do Gelson Oliveira, num dia específico, quando estava ensaiando com outros músicos. O Gelson tem vários talentos, sem dúvida, mas é bastante improvável que tenha sido ele o criador da expressão, que já circulava muitos anos atrás.

A explicação para essas fantasias me parece ser a seguinte: a gíria é realmente muito próxima da gente, é nossa, porque expressa com precisão sintética sentimentos, circunstâncias, juízos, que, sem ela, custariam várias linhas. A gíria é produto profundo de uma cultura, de uma visão do mundo, de um jeito de viver a vida.

Mas “deu pra ti” nasceu de um dos significados antigos do verbo “dar”, que circula em todas as partes do português. É “dar” no sentido de “bastar”. Mães ameaçavam filhos rebeldes com uma frase sintética: “Deu”. Isso queria dizer que a paciência tinha acabado, que o guri estava perigosamente virando o fio, que dali por diante a coisa ia engrossar. A singularidade porto-alegrense ou gaúcha do “deu pra ti” é apenas esse complemento em segunda pessoa, que nos identifica no Brasil todo: deu especificamente para ti, meu caro, quer dizer, isso que tu fizeste já bastou. Acrescente-se a ironia, a oportunidade de aplicar a frase no contexto adequado e bingo, está feito o milagre.

Quem o criou? Ninguém, ou então todo mundo. Linguagem oral não comporta datação precisa. Agora mesmo: quem foi que começou a usar o verbo “causar” como intransitivo – “O cara causou”, significando o mesmo que antigamente se dizia “abafou”?

Quem começou a usar o verbo “repercutir” como transitivo, tipo “Vamos repercutir a notícia”, quando antigamente a notícia é que repercutia? Quem começou a dizer que o jogador “enquadrou” o corpo para chutar, quando até então se diria que ele “quadrou” seu corpo? Ninguém, todo mundo.

*O escritor e professor de Literatura Luís Augusto Fischer escreve quinzenalmente no Segundo Caderno

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