FERREIRA
GULLAR
Esculhambação
Todos
usam o poder que detêm para tirar vantagens. O interesse público é sua moeda de
troca
A
tragédia de Santa Maria impactou o país pela quantidade de mortes que ocasionou
mas também pelo que significa no quadro da realidade brasileira: a denúncia da
irresponsabilidade que tomou conta do país.
Que,
no Brasil de hoje, as leis, as normas sociais estão aí apenas para constar, a
gente já sabia. Mas foi preciso, desgraçadamente, que o incêndio da boate Kiss
resultasse na morte de quase 240 pessoas -na sua maioria jovens universitários-
para que as autoridades se mancassem e se sentissem obrigadas a fazer o que
mais as desagrada: fazer cumprir as leis e, pior ainda, punir quem as
desrespeita. Na verdade, querem ser todos bonzinhos, especialmente consigo
mesmos.
A
tragédia de Santa Maria tornou de repente inviável essa cômoda atitude. A
postura usual dos governantes e das autoridades é a de não admitir os seus próprios
erros, atribuindo-os a injúrias ou mentiras inventadas pela imprensa.
Mas,
desta vez, diante de centenas de cadáveres amontoados na rua e dos parentes
soluçando em desespero, o que fazer? Dizer que se tratava de uma invenção da mídia
não podiam. Tiveram, eles próprios, que mentir.
O
prefeito de Santa Maria não sabia nada do que se passava naquela boate.
Já o
comandante do Corpo de Bombeiros da cidade afirmou, com firmeza, que,
legalmente, bastava uma única porta numa casa de shows onde se divertiam mais
de mil pessoas, embora a lotação legal fosse de apenas 650 frequentadores. Os
extintores de incêndio não funcionavam, como ficou provado pela perícia, mas
ele alegou que estavam em perfeito estado e, se não funcionaram, teria sido
pela imperícia de quem tentou manejá-los.
Noutras
palavras, embora o Corpo de Bombeiros tenha permitido que a boate funcionasse
sem obedecer a quaisquer exigências legais, nenhuma culpa tem pelo que ali
ocorreu.
Indignei-me
ao ouvi-lo mas tampouco esperava que ele dissesse outra coisa, uma vez que, se
tanta gente morreu naquele incêndio, a razão disso não é outra senão a desobediência
a toda e qualquer norma de segurança. E por que isso ocorre? Por negligência?
Por receberem propina? Por obedecerem a recomendações superiores? Ninguém sabe
ao certo. O que se sabe é que este nosso Brasil é hoje uma pura e simples
esculhambação.
Veja
se exagero. Como a boate pegou fogo mesmo e 239 pessoas morreram mesmo; como a
boate só tinha uma porta e os extintores de incêndio não funcionavam, ninguém
pode, desta vez, alegar que se trata de uma calúnia. É inegável que o desastre
ocorreu porque as autoridades responsáveis foram omissas. Mas, em seguida,
diante da tragédia e da omissão comprovada, todas elas, imediatamente, passaram
a agir com a presteza e o rigor que nunca tiveram antes.
O
resultado não poderia ser outro: em todos os Estados e cidades, onde a
fiscalização foi acionada, centenas de casas noturnas ou não apresentavam as
condições de segurança exigidas ou estavam com a licença de funcionamento
vencida. Isso significa que os proprietários e responsáveis por esses espaços vêm
durante anos pondo em risco a vida dos frequentadores, como se isso se tratasse
da coisa mais normal do mundo. Até uma borracharia funcionava como boate.
É que,
do governador ao comandante do Corpo de Bombeiros, do chefe da fiscalização ao
fiscal menos categorizado, todos usam o poder que detêm para tirar vantagens,
sejam elas políticas, sejam pessoais. O interesse público é sua moeda de troca.
Pois
bem, a pergunta a fazer é por que isso acontece e de maneira tão generalizada?
Não tenho a resposta pronta. Mas não há dúvida de que a máquina do Estado foi
apropriada por partidos e líderes políticos, que a usam em beneficio próprio,
seja pessoal, seja partidário. As leis, portanto, não têm valia ou só valem
quando servem a esses interesses.
É que,
para eles, a opinião pública não merece nenhum respeito. Que outro sentido tem
a recente eleição de Renan Calheiros para presidir o Senado Federal, embora
denunciado pelo procurador-geral da República por peculato, uso de documentos
falsos e corrupção?
Há cinco
anos, ele renunciou a essa mesma presidência e ao seu mandato parlamentar para
escapar de ser cassado. E volta, agora, sob os aplausos efusivos de seus
companheiros de farsa. É ou não é uma esculhambação?
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