MARCELO COELHO
Pé no freio
O que há de evasivo na história
de Kerouac aparece no filme de Salles Jr., só que em outro registro
Marlene Dietrich era sedutora em
qualquer circunstância, claro. Mas alguns críticos gostam de sublinhar a
importância do diretor Josef von Sternberg na criação do mito.
A manipulação da luz, do foco e
dos ângulos ajudava a envolvê-la numa névoa de gelo e de perfume.
Não é necessário um grande
diretor para que isso aconteça. Mal terminada uma peça de teatro, é possível
que nem sejamos capazes de perceber a bela atriz que estava no palco sair pela
calçada.
Richard Quine, um diretor de
simpáticas comédias românticas ("Quando Paris Alucina", por exemplo),
estava tendo um caso com Kim Novak em 1958.
Foi o ano em que rodou
"Feitiço de Amor", uma bonita história sobre uma bruxinha mais bonita
ainda. Bonita é pouco. Kim Novak nunca foi tão linda como nesse filme.
É mais um caso em que a câmera
não está apenas filmando uma beldade; enleva-se com ela, derrete-se a seus pés.
Beleza não falta ao ator Garrett
Hedlund, uma espécie de Brad Pitt 2.0, ou quem sabe 0.8, que faz o papel de
Dean Moriarty em "Na Estrada".
Mas para que o filme desse
totalmente certo seria preciso que o diretor Walter Salles Jr. estivesse
apaixonado por ele, ou que, pelo menos, acreditasse estar diante de um novo
mito do cinema.
O problema é que, desde as
primeiras cenas, Dean Moriarty aparece apenas como um garotão de voz
envolvente, mas risada um pouco boba, e sua nudez, que não se economiza, está
longe de constituir um acontecimento especialmente mágico no filme.
Com isso, "Na Estrada"
perde um pouco do seu centro de interesse.
Dean Moriarty (que na vida real
se chamava Neal Cassady) foi uma espécie de anjo além do bem e do mal na vida
da geração beat, nos Estados Unidos nos finais da década de 1940 e começos da
década de 1950.
O nome de Dean Moriarty está na
primeira frase do romance de Jack Kerouac, no qual Walter Salles Jr. se baseia.
E também está na última: "Eu penso em Dean Moriarty, eu penso até no velho
Dean Moriarty pai, que nunca encontramos, penso em Dean Moriarty".
O equivalente visual dessa
repetição obsessiva, que Walter Salles Jr. teve a inteligência de citar
textualmente no final de seu filme, teria talvez de ser uma espécie de adoração
a cada tomada em que o ator aparecesse.
Acontece que os outros atores
-Sam Riley, como Sal Paradise, e Tom Sturridge, no papel de Carlo Marx- são
igualmente bonitos e representam figuras igualmente carismáticas na vida real:
a saber, o próprio Jack Kerouac e o poeta Allen Ginsberg.
Em vez de contar com um grande
detonador dos acontecimentos, e um objeto sexual em particular, "Na
Estrada" fica assim com três, sem contar o lado feminino da história.
Nesse ponto, Walter Salles Jr.
foi fiel ao livro. O principal defeito de "On The Road" está sem
dúvida no fato de que todo o romance quer estar centrado na figura de Dean
Moriarty, mas não se assume como
declaração de amor.
Kerouac não tinha a menor vontade
de ter seus sentimentos confundidos com os de Allen Ginsberg, cuja paixão
homossexual por Moriarty/Cassady aparece, aliás, com especial clareza no filme.
Todas as idas e vindas dos
personagens, cruzando e recruzando o território americano, em certa medida nada
mais seriam do que a procura pela verdade de um relacionamento homossexual que
ficava bem ali do lado, no banco do passageiro. Claro que essa interpretação é
reducionista demais.
De todo modo, o que há de evasivo
na história de Kerouac aparece no filme de Salles Jr., só que em outro
registro. As cenas de grande bebedeira, dança, maconha etc. se repetem com
frequência e sempre dão uma impressão de falso frenesi. Os personagens gritam,
a câmera se agita, a música do "bebop" se acelera, mas parece haver
alguém por trás da cena comentando friamente: "Que loucuras, não é
mesmo?".
Com certeza, os tempos mudaram.
Walter Salles Jr. acerta em acrescentar ao filme alguns toques históricos
(Nixon falando na TV, por exemplo) para dar conta da caretice da época e do
quanto o que hoje nos parece criancice tinha força vital em 1950.
Seria exigir demais que Kerouac,
em seu livro, fosse além do que foi. Vemos nascer, com a ingenuidade
inevitável, uma revolução nos costumes e, mais do que isso, no modo de encarar
a própria vida, cujo impacto ainda estamos tratando de digerir.
Estamos todos nessa estrada
-ainda que, no filme de Walter Salles Jr., caiba reclamar um pouco da cautela
de quem dirige.
coelhofsp@uol.com.br
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