29
de maio de 2012 | 3h 07
Arnaldo
Jabor - O Estado de S.Paulo
A escolha de
Dilma
É
impossível que Dilma não esteja irritada com o Lula. Assim que ele melhorou do
tratamento, começou a falar e a criar difíceis factoides para ela resolver.
Lula talvez esteja zonzo com a doença que tem de enfrentar, traumatizado com o
choque de se descobrir 'mortal', frágil como todos nós, depois da glória de ter
governado sob beijos do povo.
Essa
doença poderia ter-lhe emprestado uma sobriedade 'democrática' maior, mas
parece que vivencia a saída do exílio no Sírio-Libanês quase como uma
ressurreição, querendo se meter em tudo, como se fosse o chefe de um governo
paralelo ao de sua 'protegida'.
Lula
nasceu de uma conjunção astral raríssima no ABC e foi muito 'moderno' quando
surgiu, criando um sensato sindicalismo de resultados, acreditando em pressão e
negociação com patrões. É natural que se tenha deslumbrado com as multidões de
operários a seus pés nos comícios, mas até hoje se considera 'especial', um
messias metalúrgico que deve comandar um país 'sem rumo'. Lula acredita mesmo
em seu ibope.
Depois
da fundação do PT, um enxame de 'soviéticos' desempregados transformaram-no em
um líder operário a ser 'aperfeiçoado' (e controlado) teoricamente, para que
eles chegassem um dia ao poder, numa estratégia 'gramsciana' vulgar. E chegaram
em 2002, até o vexame do mensalão que quase queimou o filme de Lula.
E,
no entanto, ele devia agradecer ao Roberto Jefferson por tê-lo livrado dos
comunas tutelares, pois aí ele pôde encetar sua jornada para as estrelas, sua
viagem em direção ao show midiático que encenou nos quatro anos seguintes,
pensando apenas em sua imagem, enquanto Dilma trabalhava como uma 'boia-fria',
varrendo o Planalto e apagando a luz ao fim do expediente. Lula nos deixou de
herança a maldição de um PAC eleitoreiro que só realizou 17% das metas, criando
a ideologia do 'tudo pode, desde que seja bom para eu governar', abrindo a
porta para as alianças sujas que criaram a cachoeira de corrupção que jorra
sobre nós.
Os
comentaristas ficam desorientados diante do nada que os petistas criaram com o
apoio do povo analfabeto. Os conceitos críticos como "razão, democracia,
respeito à lei, ética" ficaram ridículos, insuficientes raciocínios diante
do cinismo impune e da paralisia política.
Agora,
Lula só faz jogar batatas quentes no colo de Dilma, que tem de se virar -
("Afinal, ela não é uma 'bichinha' tinhosa?" - como ele disse na
campanha?) Assim, ele deu força à CPI oportunista para se vingar do PSDB, dos
jornais e revistas, do procurador Gurgel, para melar o julgamento do
'mensalão', arrasar o Serra em São Paulo, com o Haddad do Enem.
"Dane-se..."
- ele deve ter pensado - "se for um tiro no pé, será no pé da Dilma! Azar
dela; importante é eu recuperar meu poder, deixar a barba crescer e voltar em
2014..."
Dilma
deve estar fula com o dilema que Lula lhe deixou - governar o País entre o PT e
o Sarney. E isso justamente agora, quando o perigo econômico se agrava, com a
produção industrial caindo a níveis de 20 anos atrás e o País dependente da
exportação de matéria-prima, à beira de uma explosão da 'bolha', como alertam
economistas daqui e de fora em publicações como o Foreign Affairs e The
Economist.
Lula
nos legou uma presidente dividida entre o liberalismo e o Estado-pai, tendo de
dar uma no cravo e outra na ferradura. E, além disso, ficou irritado, porque
sua afilhada tem vida própria, muito mais coragem que ele e reconhece a
importância de fatos como o Plano Real que ele surripiou para si; ela sabe da
infernal 'faxina' que tem de fazer, para limpar os detritos que ele deixou.
Dilma
tenta resolver esse impasse entre a modernização e o atraso, como foi no veto
que fez ao Código Florestal, mesmo desagradando a aliados ruralistas. Dilma é
obrigada a governar nas brechas do possível, como foi no caso dos juros dos
bancos, pois não consegue fazer reformas mais abrangentes e isso faz aparecer seu
lado autoritário, impaciente, impondo obrigações, aos capitalistas 'canalhas'.
Mas
ela sabe também que capitalismo é um modo de produção e não regime político das
"elite"; ela sabe que, no caso brasileiro, é a única coisa que pode
arrebentar o 'bunker' patrimonialista secular. Assim dividido, o governo atual
se contenta com o autoengano, com a ilusão de que o Brasil está pronto para
'resistir' a uma crise mundial. Mantega diz que somos fortes e Dilma nos
garante que estamos preparados em 100 ou 200%. Mas, só resistir? E os planos de
reformas que não conseguem passar na estreita porta entre o PT e o PMDB?
Agora,
Lula acaba de criar uma nova crise para Dilma. Vendo que o plano da CPI não
rolou como ele queria e que até pode aporrinhar o Governo Central com respingos
da Delta, Lula tentou mudar a opinião dos ministros do Supremo Tribunal
Federal, como noticiou a última revista Veja, em uma entrevista com o ministro
Gilmar Mendes, que afirma que Lula cobrou dele e de outros ministros o
adiamento do início do julgamento do mensalão, o que significaria a prescrição
de muitos dos crimes.
É um
fato gravíssimo que vai dar pano para mangas. Será que, inconscientemente
("não; não é possível! - penso eu), Lula não é levado a prejudicar o
governo de sua afilhada, que hesita, dividida entre fazer o que acha e em
desagradar ao criador?
Dilma
me parece ter uma escolha partida: de um lado ainda aflora uma desconfiança com
a sociedade e um desejo de impor obrigações do 'alto' e, de outro, tem
consciência de que não é 'reacionário' privatizar estradas podres e antros de
corrupção em estatais inúteis.
Mas,
em seu palácio paralelo, no Planalto alternativo em que se encastela, Lula
trabalha contra tudo que possa ser uma modernidade ágil, impessoal, mais
anglo-saxônica, digamos. Isso é insuportável para populistas como ele, que só
conseguem operar no velho sistema de um velho Brasil.
É
por isso que o País está em suspense, sem nitidez ideológica ou programática,
confiando na grana futura do pré-sal ou da vinda de capitais para engordar
nossa 'bolha'. Falo isso, mas acho que a presidente tem um claro desejo de
melhorar seu país, pelo qual ela lutou até na guerrilha e tortura.
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