05
de agosto de 2013 | N° 17513
LIBERATO
VIEIRA DA CUNHA
Capítulo da
indiferença
Ouvi
dizer que o Centro de Porto Alegre está livre de violência. Ledo engano d’alma
ledo e cego, se não me falha Camões. Eu descia no outro sábado, ao meio-dia, a
Marechal Floriano, quando fui derrubado no chão pelas costas.
Dois
jovens, fortes e bem vestidos, eram os autores do golpe. Atirado às traças, num
impulso primitivo, talvez remota herança do ser das cavernas que teima em
habitar em nós, girei, caído, o corpo, e acertei com um chute de zagueiro um
dos meliantes, justo na área mais dolorida da anatomia masculina. O tipo se
dobrou, segurando as partes, e atravessou curvado a rua, em meio ao trânsito
desordenado. Seu colega, num gesto que demonstra o elevado senso de
solidariedade da classe, amparou-o, e desapareceram ambos na esquina da Salgado
Filho.
Apesar
de, no primeiro décimo de segundo, antes do revide, um deles haver repuxado os
bolsos laterais da minha calça, nada levaram. Me deixaram, ao contrário, um
presente: escoriações variadas nos joelhos e nas mãos. Sucedeu aí que, embora
algo avariado, mas teimoso, resolvi seguir em frente: lembrei que precisava
passar numa tabacaria, que é, como se sabe, o único lugar do universo conhecido
onde se encontram objetos tipo um pincel de barba marca Batil, ou uma caneta
Compactor alemã.
Essa
ficava na movimentada Travessa Acilino de Carvalho, também chamada Rua 24
Horas. Pois não é que o atendente e o proprietário, percebendo o mau estado de
meus dedos, me falaram que dois minutos antes, quase em sua porta, tinha sido
assaltada outra pessoa?
Tudo
isso o que estou contando aconteceu no coração do coração da cidade, a metros
da Rua da Praia.
Me
restaram alguns pensares melancólicos, o primeiro dos quais é o de que, no meu
caso, evidentemente, não deveria ter reagido. Os bandidos (porque eram) podiam
estar armados. Mas o que me moveu foi puro instinto, para o qual não há tecla
de controle. Outra constatação nada edificante é a de que não havia um policial
à vista em qualquer direção da Rosa dos Ventos. Nenhum. E houve mais uma
percepção sombria: jogado ao chão, ninguém, nem remotamente, me ajudou.
Não
que eu pedisse piedade. Sou um homem com alguma quilometragem, mas dentro do
prazo de validade, tanto que ainda pego de arranque. Só que nenhuma deusa,
dessas pelas quais há muito pena minha alma, me ofereceu a graça de sua mão de
seda. Todos os passantes, e eram muitos, pareciam orbitar noutra galáxia. Sua
indiferença, apatia, insensibilidade foi abissal, completa, total. O Papa,
aliás, andou falando sobre o tema no Brasil, claro que em outro contexto.
E
eu, que sou um incréu, apesar de crente nesse admirável Francisco, fico
pensando se afinal a degradação não será a nossa recompensa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário