FERREIRA
GULLAR
A exceção e a regra
Existe
um presidente da República, em pleno exercício do mandato, que doa 90% de seu
salário
Falando
francamente, confesso a você que já quase perco a esperança no Brasil. Basta
ouvir o noticiário de televisão ou ler o jornal. É que a corrupção tomou conta
do aparelho de Estado de tal modo que até parece não ter mais volta.
Não
se trata apenas do roubo puro e simples, da apropriação de recursos públicos
que são desviados para a caixa dos partidos e para o bolso dos políticos. É também
o uso da máquina -dos mútuos favores e das leis- para benefício dos ocupantes
de altos cargos nos diferentes setores do poder. Sem qualquer escrúpulo, a
casta que se apropriou do país atribui-se a si mesma altos salários, vantagens
e privilégios que envergonhariam qualquer um.
São
salários que a maioria dos trabalhadores brasileiros jamais ganhará, mesmo que
trabalhe 20, 30 anos. E o pior é que grande parte daquela gente simplesmente não
trabalha. Muitos recebem como funcionários públicos para prestar serviço na
casa ou na firma do parlamentar que os apadrinha.
E
você se pergunta: como pôr fim a isso? E logo vê que é muito difícil, senão
impossível, uma vez que toda essa safadeza está amparada em leis e dispositivos
que eles próprios inventaram e aprovaram.
Para
mudar essas leis, seria preciso elegermos legisladores totalmente desvinculados
dessa casta corrupta. Mas como, se ela domina toda a máquina do Estado e os
partidos? Os que a isso se opõem -e os há!- continuarão minoria e pouco ou
quase nada conseguirão fazer. Por isso, a cada dia, meu desânimo é maior.
Bem,
era, porque inesperadamente me chegaram informações de que existe um presidente
da República, em pleno exercício do mandato, que doa 90% de seu salário à sociedade.
Devem imaginar meu espanto ao saber disso. Mas ele existe, sim, chama-se José Mujica
e é presidente da República do Uruguai.
De
nome, já o conhecia e me lembro de quando foi eleito em 2009, em substituição a
Tabaré Vázquez, político de esquerda como ele. Admito que, ao saber dele, temi
que fosse outro exemplo do neopopulismo em que a esquerda latino-americana se
transformara.
Enganei-me
redondamente e só me dei conta disso agora, ao receber essa notícia escandalosa
de que é ele o presidente da República que não só não rouba nem deixa roubar
como entrega quase todo o salário que recebe a instituições que ajudam aos
pobres. Estava eu, portanto, longe de imaginar que José Mujica fosse o exemplo
de homem público que ele é, com um grau de desprendimento e consciência social
como dificilmente se encontra hoje em dia. De minha parte, posso dizer que não
conheço nenhum.
José
Mujica tem uma longa história. Foi guerrilheiro naqueles anos em que muita
gente perdeu a lucidez política e entrou nessa errada.
Ele,
como outros, inclusive nossa Dilma, por força das circunstâncias, teve que
abrir mão do radicalismo ideológico e aderir à normalidade institucional democrática.
Elegeu-se deputado, depois senador e, durante o governo de Tabaré Vázquez, foi
ministro da Granadería. Talvez algo do radicalismo guerrilheiro ainda persista
em alguma de suas atitudes, como negar-se a residir no palácio presidencial após
tomar posse na chefia do governo.
Mas
pode ser mesmo que prefira morar em sua pequena fazenda nos arredores de
Montevidéu. Para quem não gosta de pompa, a própria casa é sempre mais
acolhedora.
A
verdade é que, muito embora já tenha exercido mandatos e ocupado cargos no
governo, não enriqueceu, já que, além dessa pequena fazenda, tudo o mais que
possui é um fusca azul celeste, que não deve valer no mercado mais que R$ 3.000.
Sua
mulher, a senadora Lucía Topolansky, também doa quase todo o salário a entidade
sociais. A possibilidade de que isso não passe de uma atitude demagógica parece-me
descabida, já que ambos se declaram em fim de carreira.
Se
saber da existência de um tal político me deu ânimo novo, não significa que
basta ser solidário e generoso com os mais pobres para fazer bom governo e
resolver os problemas do país. Problemas esses que, a cada dia, se tornam mais
difíceis de resolver. No entanto, para nós brasileiros, que vemos nosso país
tomado por políticos corruptos, o exemplo de Mujica causa inveja.
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