21
de agosto de 2012 | N° 17168
FABRÍCIO
CARPINEJAR
Descongelar a geladeira
Na
infância, não receava quando a mãe perguntava quem tinha quebrado um vaso ou
quando ela questionava a identidade daquele que mexeu em sua bolsa à procura de
troco.
Todo
mundo temia a contagem regressiva para limpeza da geladeira.
– Vou
descongelar a geladeira amanhã.
Vivíamos
48 horas de ameaças.
Ela
entrava em transe monotemático. Ofegante, avisava e logo esquecia que avisou.
Era
como faltar luz ou água em casa. Exigia um plantão afetivo, não se podia nem
brincar com o assunto e subestimar a força-tarefa com piadas.
Descongelar
a geladeira significava uma operação séria, grave, de abstinência coletiva.
Você
talvez não vá entender, devido à atual oferta de geladeira com duas, três,
quatro portas, capacidade para 450 litros, sistema frost free, drink express ou
gelo fácil. Hoje, a geladeira até cozinha, embala e entrega a marmita quente.
Naquela
época, o refrigerador não ultrapassava 1m60cm, por respeito à estatura das
vovozinhas. Contava apenas com trinco simples, um lado e uma cor.
Não
sabia ler nem escrever, sem nada automático por dentro.
Uma
vez por mês, as famílias deveriam esvaziar totalmente as prateleiras e o
congelador.
Uma
guerra sanitária que deveria ocorrer no dia certo (de preferência ensolarado),
na hora H em que os produtos expiravam as datas de validade. Tudo para
assegurar poucas perdas e uma maior economia no lar.
A
privação custava caro para as crianças, aniquilava nossos assaltos apetitosos
de tarde para adiar os temas. Ficaríamos longe das sobras do almoço e da janta,
do ki-suco e do pudim minguante.
A mãe
mobilizava a faxineira para ajudar a caçar cheiros passados e bandejas vencidas
debaixo das crostas do gelo.
Não
podíamos entrar na cozinha enquanto a equipe feminina realizava o serviço e
inspecionava a Antártica caseira.
Elas
criavam um cordão de isolamento, fechavam o acesso pelo pátio. Juro que uma
dedetização seria mais discreta.
Tirar
a geladeira da tomada correspondia a iniciar uma cirurgia delicada, salvar o máximo
possível de mantimentos, evitar que delicadas e caras compotas estragassem.
O
pai se trancava no escritório. Os filhos terminavam enviados para os vizinhos.
Pela
movimentação, o bairro descobria a chegada da data decisiva do degelo.
A mãe
comentava:
– Mais
simples morrer do que descongelar a geladeira.
– Não
exagera, mãe! – respondia.
– Exagerar?
Vai morrer para ver o que é pior.
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