25
de agosto de 2012 | N° 17172
CELSO
GUTFREIND
Carta aos livros
O
Tristão era um amante normal. Alimentou ilusões quando o amor chegou. E,
durante, sempre temeu que a mulher partisse antes do fim. Mas com o Chico
Buarque, o George Clooney, o Martinho da Vila. Surpreendeu-se quando a Isolda
fugiu com o dono do Sebo.
Não
porque fosse uma livraria. Foi ali que se conheceram. Ela sempre gostou de
literatura. No segundo encontro, Tristão recitou o final de O Ciúme, do
Guilherme de Almeida. Conquistou Isolda ao prever o ciúme de quem a veria pálida
e linda pela primeira vez. Depois, ofereceu-lhe a obra seleta do Manuel
Bandeira. Não foi amor à primeira vista. Foi aos primeiros livros.
O
Tristão era mesmo um leitor razoável. Dominava quase toda a prosa do Nabokov,
muito além de sua Lolita. E quase não tinha exemplar do Quintana que não
tivesse lido. Nas noites com a Isolda, jamais suspeitou da fatalidade daqueles
quases.
O
tempo mostrou que não tinha cacife para a mulher. O dono do Sebo havia lido a
Comédia Humana inteira. Chegava a colecionar desenhos de Balzac, a quem chamava
de senhora fofa. O Tristão ria disso, inocente como um homem que se acha o máximo
ou ignora a concorrência e considera suficiente o que leu.
O
dono do Sebo tinha toda a coleção do Guilherme de Almeida e não o módico O Ciúme,
do volume dois. Isto incluía textos sobre a raiva, a esperança, a inveja, o
perdão. Sobre a vida e a morte.
Com
a verdade das melhores frases, elogiou os olhos verdes de Isolda, comparando-os
com a obra de Camões, que expunha integralmente na parte central da loja. Ao
Tristão, restava a antologia da lírica, adquirida com um bom desconto. Nem fez
falta na prateleira em que viveu apagada por seis edições de Os Lusíadas.
O
dono do Sebo não era um quase. Ele tinha cara de obras completas com sumário,
prefácio, índice. Voltava aos clássicos e mergulhava nas novidades. A Isolda
entrou na dele como nota de rodapé, tipo um puxado para as casas, mas era maior
do que nas casas, porque tinha a ver com os livros, onde a vida pulsa ainda
mais.
A
tristeza do Tristão era volumosa. Ele se arrastou até o boteco da esquina,
desses que acolhem um sujeito de biblioteca rala, cuja única coleção é um
arrazoado sobre a Inconfidência Mineira, com um Tiradentes esquartejado na última
página.
Mas
ficar sem mulher não dava. Seria quase tão grave quanto não ler. Então, mandou
baixar uma cerveja, batata frita e ofereceu para a primeira moça disponível. Dedicou
a ela a canção seguinte e, quando o cavaquinho fez silêncio, o Tristão recitou
O Ciúme. Quase completo.
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