29
de agosto de 2012 | N° 17176
DIANA
CORSO
Meu pai e os monges de
Myanmar
No
hospital, no início da derradeira jornada, meu pai me deixou uma incumbência.
Ainda na emergência aguardando diagnóstico, eu procurava acalmá-lo. Com o
pensamento confuso, ele tentava tomar providências práticas, dinheiro, seguro
de saúde.
Entre
as últimas preocupações que conseguiu enunciar, ficou a pergunta, que fez com
olhos já foscos: “e os monges de Myanmar?”. Frente à nossa impotência, à mercê
do corpo que falia, só me cabia responder: “Deixa que cuido deles!”. Fiquei
devendo essa parte e, como sempre, quando se perde o pai, tantas outras.
Era
agosto de 2007, faz agora cinco anos. A notícia candente da ocasião era o
engajamento dos monges budistas nos protestos pela situação cronicamente
precária desse minúsculo e instável país no sul da Ásia. Era tocante a imagem
daqueles homens pacíficos, em suas vestes laranjas, enfrentando as potências
armadas.
Meu
pai vivia o noticiário como algo pessoal. Uma posição compreensível para um
sobrevivente da II Guerra. Ele teve a família destruída, o pai e o irmão
assassinados em Auschwitz, pela má avaliação política que muitos judeus
húngaros fizeram. Subestimando a ascensão do nazismo em seu país, deixaram de
fugir a tempo. Dali em diante, a conjuntura nunca mais o pegaria com as calças
na mão, espero ter aprendido isso com ele.
Lembrei
de tudo isso ao ler o recentemente reeditado livro de memórias de Philip Roth:
Patrimônio: Uma História Real (Companhia das Letras, 2012), que narra a etapa
final da sua vida com o pai.
Ao
saber do tumor que mataria Herman Roth, então com 86 anos, o filho Philip foi
incumbido de dar-lhe a notícia, ou pelo menos as informações necessárias para
conduzi-lo à consulta com o neurocirurgião. A caminho desse encontro, o
escritor errou um cruzamento e foi, num lapso, parar no cemitério onde
repousava o corpo da mãe.
Conduzido
pelo inconsciente, desceu, contemplou o túmulo que receberia o pai e
ponderou... sobre a vida! A sobrevivência quase birrenta do seu pai – “Ele e a
vida vinham juntos de muito longe” – sua compulsão a narrar o tempo todo –
“Você nunca deve esquecer nada!” , sempre dizia – marcaram Philip Roth, que
tampouco pôde deixar de contar histórias para viver.
Também
aprendi que, mais do que a morte, é a vida a grande surpresa. A mensagem final
do meu pai foi que para mantê-la é preciso olhar em volta, entender o que se
passa. Observando o mundo, seus políticos, soldados e os monges de Myanmar,
talvez possamos sobreviver e fazer alguma diferença. Disso posso cuidar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário