22
de agosto de 2012 | N° 17169
MARTHA
MEDEIROS
Trem bão
Foi
só ler no jornal sobre a remota possibilidade de voltarmos a ter trens de
passageiros no país e me pus a delirar – que luxo seria poder ir de trem para
Santa Catarina em vez de perder horas infindáveis em congestionamentos, ou ir
de trem para as cidades da serra, contemplando aquele cenário inspirador
passando pela janela, ou ir de trem até Montevidéu, mesmo numa viagem mais
demorada do que um voo, mas certamente mais romântica e menos estressante, sem
sujeição a cancelamentos, atrasos e outras chatices corriqueiras do setor
aeroviário.
Minha
mãe fala com saudosismo das viagens que fazia entre Porto Alegre e Sant’Ana do
Livramento, onde viveu quando criança. Eu não tive trens povoando minha
infância. O primeiro me encontrou já com 24 anos, quando precisei me deslocar
de Londres até a cidade portuária de Dover, na Inglaterra. Atravessei então o
Canal da Mancha num barco que atracou em Osteende, na Bélgica, e ali mesmo
peguei outro trem para Bruxelas, e essas duas viagens em um único dia, por dois
países diferentes, selaram minha rendição.
Daquele
dia em diante, circulei pelos países da Europa em trens diversos, desde uns bem
esculhambadinhos até os modernos TGVs, sempre em segurança e militarmente no
horário (trens marcados para as 14h37min saem às 14h37min, uma indecência de
pontualidade). Mas o melhor de tudo é o benefício que pouco se comenta: o
convite a refletir, que todo trem nos faz.
O
escritor e filósofo Alain de Botton tem uma frase ótima a respeito: “Viagens
são parteiras de pensamentos”. Dentro de trens, então, nem se fala. Ônibus
também convidam à dispersão, porém são veículos que precisam parar nos postos
de pedágio, que desaceleram diante de um buraco, que fazem ultrapassagens que
nos obrigam a trocar a dispersão por preces aflitas. Já trens mantêm velocidade
constante, e isso ajuda no fluxo das ideias – somos conduzidos não só para
outra cidade, mas para um estado elevado de transcendência.
E
tem a mística envolvida. Ninguém conseguiria imaginar o detetive Hercule Poirot
desvendando assassinatos no interior de um ônibus da Unesul, assim como é
improvável que um rapaz sente ao lado de uma moça num pinga-pinga e proponha
que desçam juntos na próxima parada para percorrerem uma cidade desconhecida –
Camaquã, por exemplo.
Já
em um trem, propostas malucas podem ser levadas em consideração. Foi o que
aconteceu no filme Antes do Amanhecer, em que Ethan Hawke e Julie Delpy se
conhecem num vagão, desembarcam juntos em Viena e... bom, assistam.
O
Brasil é craque em filme de caminhão, que são road movies mais ligados à nossa
identidade. É difícil imaginar que, num país onde nem o metrô pegou, teremos
trens de passageiros desafogando as estradas e inspirando livros, filmes e
casos de amor, mas não custa sonhar. Tanta coisa temos que colocar nos trilhos,
quem sabe não começamos por aquelas que os têm por direito.
Linda
quarta-feira pra voce - Aproveite.
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