sábado, 18 de agosto de 2012



18 de agosto de 2012 | N° 17165O
PRAZER DAS PALAVRAS | CLÁUDIO MORENO

Nada a ver

De tudo aquilo que a escola nos ensina, nada nos marca mais fundo que as palavras que ouvimos de nossos mestres prediletos. Nas séries iniciais, então, a confiança na sabedoria da professora é ampla, total e irrestrita – e ai do sacrílego que ousar corrigir algum de seus ensinamentos! (Perguntem se alguma vez consegui convencer filho meu ou filha minha de que determinada regra de Português aprendida no colégio estava errada... Jacaré conseguiu? Pois nem eu...).

É claro que muitas dessas “verdades” vão pouco a pouco perdendo o brilho à medida que nos distanciamos no tempo, mas algumas delas se entranham de tal forma nos tecidos de nossa mente que nos custa admitir que está na hora de expulsá-las, mesmo desconfiando de que são moeda falsa.

Um exemplo tocante é a leitora Elena V., de São Paulo, que escreveu a esta coluna em busca de um aliado para uma ideia que ela defende, quixotescamente, há muito tempo. “Professor, tenho esta dúvida desde que deixei o ensino fundamental, faz mais de trinta anos, mas não tive sucesso em solucioná-la: na 5ª série, aprendi com minha professora de Português que a expressão correta seria ‘tudo haver’, e não ‘tudo a ver’, como escrevem por aí. No entanto, eu era sempre rechaçada quando empregava a forma que considero correta.

Mesmo na faculdade perdi pontos em trabalhos e exames pela grafia ‘tudo a haver’, que era corrigida por todos os professores. A coisa ficou pior quando a TV Globo começou a usar ‘tudo a ver’ como bordão de sua programação, porque aí todos mencionavam a emissora para mostar que eu estava errada”.

Numa comovente fidelidade às ideias transmitidas pela antiga professora, ela continua narrando sua cruzada: “Comecei então a pesquisar em gramáticas e em sites dedicados à língua portuguesa, mas as referências a qualquer uma dessas duas formas de grafia eram inexistentes.

Consultei, inclusive, estudiosos e nativos de outros idiomas (de origem latina e germânica), e alguns deles responderam que, pela lógica dos próprios idiomas, a grafia correta poderia ser ‘tudo a ver’, o que só me confundiu ainda mais. Numa pesquisa no Google, percebi que as duas formas são usadas atualmente, embora haja predominância do ‘tudo a ver’. Pergunto-lhe: será que há luz no fim do túnel? Será que um dia a forma que defendo vai finalmente prevalecer?”.

Pois então, minha cara Elena, sinto desiludir-te, mas sempre foi “tudo a ver”, “nada a ver”. A TV Globo, desta vez, não tem culpa alguma: assim está no Houaiss, assim está no Aurélio, mansamente registrado. Não há motivo para dúvida; haver, aqui, não caberia em nenhum de seus sentidos, e a sequência *nada haver, assim, com o verbo no infinitivo, é absolutamente impossível no Português.

Vais encontrar, aliás, a mesma estrutura no Francês, língua irmã da nossa, na qual “isso nada tem a ver comigo” fica exatamente “ça n’a rien à voir avec moi” (o Espanhol usa “tiene que ver”, igual ao “tem que ver”, que também usamos aqui no Brasil).

É assim que vais encontrá-la em Rubem Braga: “E se na verdade não somos pescadores nem aviadores, que temos a ver com o vento?”; “Afinal, o leitor nada tem a ver com o que me aconteceu em Casablanca”. E em Monteiro Lobato: “Que tem a Lua a ver com isso?”.

Dentre as dezenas de ocorrências em Nelson Rodrigues, escolho duas: “Aquele que estava diante de mim nada tinha a ver com o suave, o melífluo, o pastoral d. Hélder da vida real” e “As nossas conversas eram tristes, porque o amor nada tem a ver com a alegria e nada tem a ver com a felicidade”.

Em Érico Veríssimo também: “Pois esta revolução, meu filho, não tem nada a ver com jogo de xadrez”; “A inteligência não tem nada a ver com a fé – replicou Rodrigo”. Em Carlos Drummond de Andrade, nosso poeta maior: “Eu preparava pastas de documentos e as mandava para lá, não tinha nada a ver com a política do governo”; “Eu sofria quando ela me dizia: – Que tem a ver com as calças, meu querido?”.

Do outro lado do Atlântico, comparecem Saramago (“prova de que o meu íntimo não tem nada a ver com este caso”) e Lobo Antunes (“Porque não tinha a ver com o processo”). Queres mais? Clarice Lispector:

“Que é que você e o sol têm a ver com a poesia?”. Carlos Heitor Cony: “Zizinha aceitava tudo, achou até que o amor àquela cobra tinha alguma coisa a ver com são Francisco de Assis” – e muitos, muitos outros, que não preciso mencionar porque acho que já dei exemplos bastantes.

Algo me diz, no entanto, que minha resposta não vai pôr fim ao teu tormento de tantos anos, e vais continuar procurando alguém que te justifique o “haver”... Esquece isso, Elena; exorciza este fantasma, absolve tua professora, que devia ser excelente, a julgar pela marca que deixou na tua vida, e parte para novas dúvidas, que a vida continua.

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