DANUZA
LEÃO
Se eu pudesse
Iria
recomeçar a vida em outra cidade, talvez em outro país, para nada, só para começar
tudo do zero
Se eu
pudesse, mudava minha vida toda; não que ela esteja ruim, mas só para ver que
ela pode ser diferente.
Se
eu pudesse, me desfaria de muitas coisas, da minha casa e de quase todas as
roupas. Afinal, quem precisa de mais do que dois pares de sapatos, dois jeans,
quatro camisetas e dois suéteres, sobretudo quando anda pensando em mudar de
vida?
Se
eu tivesse muitas joias, enterrava todas elas na areia da praia para que um dia
alguém enfiasse a mão brincando, assim para nada, e tivesse a felicidade de
encontrar um colar de brilhantes. Afinal, dá para viver sem, não dá?
Das
algumas garrafas de champanhe guardadas cuidadosamente, na horizontal, daria
para abrir mão, sem nenhuma possibilidade de remorso futuro; champanhe, além de
engordar, não passa de um espumante metido a alguma coisa, e nem barato dá, de
tão fraquinho que é. Dos vinhos, mais fácil ainda; nada melhor do que o velho e
bom uísque, com o qual sempre se pode contar.
E as
amizades? Aliás, as amizades, não: as relações. Ah, se tivesse coragem, compraria
um novo caderno de telefones e passava só aqueles pouquíssimos nomes que
realmente têm algum significado, e que são tão poucos que nem precisaria
escrever. Guardaria todos de cor, não na cabeça, mas no coração, e um dia me
esqueceria de todos eles.
Se
eu pudesse, iria recomeçar a vida em outra cidade, talvez em outro país, para
nada, só para começar tudo do zero. Para às vezes sofrer bastante, pensando que
poderia ter tido mais juízo e não ter feito tantas bobagens, pois se tivesse
errado menos poderia ter sido mais feliz -talvez. Mas alguém tem o poder de
fazer alguém sofrer, ou a capacidade do sofrimento é um bem pessoal e
intransferível?
Se
alguém conseguisse ainda me fazer sofrer, seria um acontecimento a ser
festejado.
Se
eu pudesse -e não tivesse
tantos
compromissos-, seria vegetariana, passaria as noites em claro e teria muito
amor pelos animais e pelas crianças. Mas como tenho horror a qualquer bicho e
nenhuma paciência com criancinhas, a não ser com meus bichos e minhas crianças,
vou ter que atravessar a vida levando essa pesadíssima cruz -afinal, ficou
combinado que de certas coisas não se pode não gostar, e se não se gostar não
se pode dizer, que vida.
Se
pudesse, largaria tudo e iria embora para um lugar onde ninguém me conhecesse,
onde não teria passado nem futuro; para um lugar esquisito no qual não
entenderia a língua do povo nem ninguém entenderia a minha. Seríamos todos,
assumidamente, estranhos -como somos no edifício onde moramos, no local de
trabalho, dentro de nossa família. Ou você pensa que alguém conhece alguém
porque dá beijinhos no elevador?
Se
eu pudesse, quando acordasse hoje de madrugada saía descalça só com um casaco
em cima da pele e ia molhar os pés na água do mar, sozinha. Depois, ia tomar um
café no balcão de um botequim, como fazem os homens.
Se
eu pudesse, rasgava os talões de cheques, cortava os cartões de crédito com uma
tesoura, fazia uma linda fogueira com os casacos de pele e ia saber como é que
vivem os que não têm, nunca tiveram e nunca vão ter nada disso. E aproveitava o
embalo para cortar os fios dos telefones, jogar o celular na tela da televisão
e o computador pela janela -deve ser lindo, um computador voando.
Se
eu pudesse, raspava a cabeça, acendia dois cigarros ao mesmo tempo e tomava uma
vodca dupla, sem gelo, num copo de geleia. E pegaria uma gilete para picar em
pedacinhos a carteira de identidade, o passaporte e o CPF, sem pensar um só instante
nas consequências e sem um pingo de medo do futuro.
E
jogava na lata de lixo meus lençóis, meus travesseiros de pluma, meu cobertor e
engolia minhas pestanas postiças, só para aprender que a vida não é só isso.
Se
eu pudesse, esquecia o meu nome, o meu passado e a minha história e ia ser
ninguém. Ninguém.
Se
eu pudesse, não, se eu quisesse.
Pois
é, tem dias que a gente está assim, mas passa.
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